Capítulo 1 – O Diário de Carolina: o encontro
Fortuna, 15 de março de 2016.
Não sou muito de escrever. Aliás, nunca fui, mas foi uma recomendação da psicóloga, então, vamos lá...
Me sinto meio boba fazendo isso, afinal, nem mesmo na adolescência, eu tinha um diário para escrever, mas espero que ajude e surta algum efeito não só para mim, mas para meu marido, que é o motivo de eu começar a visitar um psicólogo, coisa que nunca precisei na minha vida. Sempre achei que fosse coisa de doido ou besteira, pois para quê eu vou pagar alguém para conversar comigo? Logo eu, que faço amizade até com o vento?
Mesmo assim, por meu Bentinho, eu vou... Por ele, eu faço tudo o que for preciso, afinal, eu o amo e não suporto vê-lo como está...
Ele nunca foi um homem de muitas palavras e nunca foi extrovertido, como eu. Sempre foi muito calado, muito sério e sempre teve uma aparência melancólica...
Lembro como se fosse ontem que eu o conheci...
Nos conhecemos ainda na escola... Eu tinha acabado de me mudar para a escola onde ele estudava porque pulei o muro da escola anterior para matar aula e assistir o Titanic no cinema, que estava passando na época, junto com minhas inseparáveis amigas Mari e Kelly. Fomos pegas no flagra pela coordenadora da escola, bem na hora que Kelly já tinha pulado, eu estava subindo o muro e Mari estava esperando para pular também. Levamos tanto grito... Eu, como sempre, não pude perder a piada e mesmo levando um carão enorme (que, inclusive, fez a Mari chorar), falei que “ela tava muito nervosa e que estava precisando namorar um pouquinho e dar uns beijos por aí.” Kelly não pode conter a gargalhada, Mari ria e chorava ao mesmo tempo e isso irritou a coordenadora mais ainda! Hahaha! Como eu era sem-noção! Que bom que a gente amadurece depois! E por causa desse atrevimento, levei uma suspensão de 20 dias e meus pais, envergonhados com minha atitude e por castigo, fizeram eu mudar de colégio.
Fiquei triste porque éramos “As três mosqueteiras” e não estávamos mais juntas, rindo e bagunçando na escola e mudei de uma escola mais simples para uma mais conservadora ainda e que deve ter custado bem mais caro para os meus pais. Naquela época, me perguntava “onde eles estão com a cabeça em achar que um colégio mais duro vai me ajeitar? Eles vão ver só! Eu vou ser pior ainda, só de ruim, para eles aprenderem a não separar as três inseparáveis amigas mosqueteiras”. Quando olho meus filhos hoje e lembro de mim mesma, como era antigamente, dou graças a Deus deles não terem puxado a mim! O mais novo é que está começando a querer fazer graça, mas como eu fui do mesmo jeito, já tento “acabar com a festa” antes, me segurando para não rir.
Voltando à história da minha adolescência, lembro que a primeira vez que meus pais me levaram para o novo colégio, eu olhei a entrada e perguntei espantada:
- É aqui que eu vou estudar?!?!
- É sim. Não é lindo? – perguntou minha mãe. A escola era uma das mais antigas da cidade. Possuía uma arquitetura antiga, mas era pintada de cinza-escuro e possuía portões de ferro de cor chumbo, quase preto.
- Mas isso parece um cemitério!!! Credo! Que horror! E olhem esses estudantes! Só tem mauricinho e patricinha!
- Carol, você não está no direito de reclamar. Lembre-se do que você aprontou no ano passado. Isso é para você aprender a não dizer essas coisas com uma autoridade.
- Mas você me separou das minhas amigas...
- Elas não são boas companhias para você.
- Errado, mãe: eu é que tive toda a ideia. Eu sou a má companhia.
- Você não me responda! Desça do carro, vá já para a aula e trate de se comportar, senão, ficará em casa, de castigo, todo final de semana!
E desci irritada e revoltada, como muitos adolescentes, né? Mas sabia que estava errada. Se dependesse do meu pai, eu seria a menina mais mimada do mundo, mas minha mãe tinha pulso firme e era quem colocava ordem na casa. Meu pai era bobo, que nem eu agora e também tinha que se controlar para não rir dos meus atrevimentos, mas eu percebia que ele se divertia com eles e quando mamãe não estava, ele ria alto, junto comigo.
O “cemitério” tinha lá seu charme. A arquitetura antiga é sempre muito bela, mas precisava pintar a escola de cinza? Que mau gosto! E o uniforme da escola era preto, cinza e branco, com gravatas vermelhas, tanto para meninos, quanto para meninas, mas as meninas usavam saias e os meninos, calças compridas.
Quando entrei na escola, muitos alunos percebiam que não era dali e lançavam olhares de estranhamento, mas eu abria o meu melhor sorriso e cumprimentava a todos, mesmo sem conhecer ninguém, vi que muitos simpatizavam comigo e já fui conversando com as meninas que mais senti afinidade. Como disse, faço amizade até com o vento.
Elas me mostraram algumas coisas do “cemitério”, rapidamente, riram do meu apelido para a escola e, finalmente, fomos para a sala de aula antes que tocasse o sinal.
Ao entrar na sala de aula, vejo alguns meninos em pé, conversando entre si e olhando para nós meninas e as meninas que estavam comigo devolvendo os sorrisos a eles. Sorri de volta, mas ao olhar ao redor da sala para conhecer o lugar, foi quando o vi pela primeira vez... Ele estava sentando em uma das carteiras, bem no meio da sala, com um olhar vago... Olhando para cima e para o lado, como se estivesse pensando em alguma coisa... Ele me viu chegar com as meninas, mas olhou com indiferença e depois, pareceu lembrar o que queria e escreveu em seu caderno. Foi quando cutuquei a Amanda, e perguntei:
- Quem é aquele?
- Ah! É o Lestat. Quer um conselho? Esqueça! Ele não fala com ninguém e é todo esquisito e delicadinho demais.
- Ele é lindo... – falei quase sussurrando, em transe ao ver aquele menino tão belo.
- É sim, mas... Desconfiamos que ele seja gay.
- Ah, não. Não pode ser...
- Quer ir lá conferir? Se quiser, boa sorte. – tinha dado o primeiro passo para ir lá conhecê-lo, pois eu “sou dessas” e aí, ela continua – Sabe o que é engraçado? É seu primeiro dia no “cemitério” e você fica logo afim do Lestat? – e eu, ela e as outras meninas começamos a rir.
Não era à toa que o chamavam de Lestat. Ele tinha uma pele pálida, cabelos negros como a noite, longos e volumosos e olhos azuis tão claros e tão puros, como nunca tinha visto antes e eu só fui percebendo o quanto eram azuis quando ia me aproximando, lentamente, cada vez mais e mais perto dele, quase como se estivesse hipnotizada e ele estivesse arrastando meu corpo por telecinésia.
Fiquei tão abobalhada que fiquei frente a frente com ele, de tanto que quis chegar perto daqueles olhos azuis tão puros e ele parou de escrever e olhou para mim, mas estava tão concentrada em ver como eram os olhos dele que não vi para onde, ou melhor, para QUEM eles estavam olhando. Eis que sou acordada por uma voz médio-grave masculina, mas suave, fria, educada e baixinha, que pergunta:
- Pois não? – eu não me lembro de ter corado tanto na minha vida, até porque, eu não sou uma mulher tímida. Nunca fui! Mas nessa ocasião, eu fiquei tão envergonhada por caminhar até ele sob essa “hipnose”, que não pensei no que dizer... Não fiz uma aproximação “normal”, como faria com toda e qualquer pessoa, mas, obviamente, aquele menino não era normal. Tive que pensar em algo rápido e no nervosismo, falei:
- Você senta aqui no escuro para não virar cinzas, Lestat? – o que diabos foi aquilo que acabei de perguntar? A pior aproximação que fiz em toda a minha vida!!!
- Quê? – perguntou espantado e sem entender nada.
Acho que falei em voz alta, pois a sala toda riu às gargalhadas e acabei rindo de nervoso e rindo de mim mesma também, mas vi que ele fez uma cara de quem não gostou e falou em voz ainda mais baixa e em tom pesaroso:
- Com licença... – e se levantou e mudou de lugar, levando o caderno, estojo e mochila junto.
“Sua idiota!” pensei, me xingando. E antes que pudesse pensar em consertar a besteira que fiz, toca o sinal, todo mundo vai aos seus lugares e corri para me sentar ao lado dele, que pareceu não ter gostado disso também. E antes que eu pudesse falar algo para me desculpar, entra a professora em sala de aula, que começa a se apresentar e pede para que todos façam o mesmo.
Cada aluno se levantava, dizia seu nome e o que gostava de fazer ou pretensões futuras, mas eu não conseguia prestar atenção nos outros alunos e alunas. Olhava fixa e descaradamente para ele que, percebia, de vez em quando, os meus olhares e parecia um pouco incomodado com aquilo. Parecia não saber lidar com aquilo ou não me entender, além de estar chateado por eu ter feito a sala inteira rir dele quando, na verdade, estavam rindo de mim. Eu não me importava, mas agora, casada com ele, compreendo melhor como a mente dele funciona ou, pelo menos, assim penso eu, pois agora, o meu esquisito está ainda mais esquisito do que antes, quando éramos dessa época...
Quando chegou na vez dele de se apresentar, ele se levantou e começou:
- Eu sou Moacir... – e, sem pensar muito, o interrompi:
- É o quê, menino? Tomou café hoje não? Fale alto pra sala ouvir. – e, mais uma vez, a sala caiu na risada e ele olhou para mim com uma cara ainda mais feia do que a que ele tinha feito, da primeira vez que a sala riu dele.
Segunda idiotice do dia, com o mesmo menino, em poucos minutos que nos conhecemos. Meu Deus... Acho que eu merecia um carimbo de “imbecil” na minha testa...
Ele se retraiu ainda mais, por ter virado a “piada da sala” novamente, mas limpou a garganta, projetou mais a voz e falou em voz alta:
- Meu nome é Moacir René. Tenho 17 anos, gosto de ler e pretendo ser um arquiteto. – e voltou a se sentar. Pensei “só isso?!?!?! Credo! Tão lindo, com um nome tão horrível e falando tão pouco...!” Eu tinha falado aquela besteira sem pensar, justamente, porque queria ouvir mais sobre ele e ele faz essa microssíntese da vida dele?!?! A professora Sílvia, então, toma a dianteira e fala:
- Que tal falar sobre as suas conquistas, Moacir? – e ele ficou calado. A professora continuou, após o momento de silêncio – Turma, para quem não conhece, o Moacir foi campeão, ano passado, das Olimpíadas de Matemática da cidade, além de ser poeta e músico, é campeão do Clube de Xadrez da escola e entrou, recentemente, na seleção de vôlei e tenho certeza que representará muito bem a classe durante os jogos internos. – fiquei de queixo caído, enquanto todos o aplaudiam educadamente! Quer dizer que o “Lestat” era tudo isso? Um gênio da matemática, artista e, ainda por cima, bom nos esportes? Fiquei ainda mais encantada com o menino, querendo saber mais sobre ele!
Ele apenas consentiu com a cabeça e parecia ter corado um pouco e depois, abaixou mais a cabeça e quieto permaneceu.
Como assim?!?!? Se eu tivesse um currículo desses, ia esfregar na cara de todo mundo e, inclusive dos meus pais, que diziam que eu era “um caso perdido” e só ia “pisar no chão” porque era o jeito.
Outros alunos foram falando sobre si até que, finalmente, foi a minha vez.
- Olá a todos! Meu nome é Carolina, mas podem me chamar de Carol. Tenho 18 anos e minhas maiores conquistas foram não ter reprovado ano passado, ter comido a maior quantidade de fatias de pizza num rodízio e ter zerado o jogo do Alladin. – disse com meu sorriso entusiasmado de sempre e a sala riu de mim, mais uma vez, mas havia um rosto... Um olhar que não estava voltado para mim e era, justamente, o olhar que eu mais ansiava...
- Mais alguma coisa que queira compartilhar conosco, Carolina? – perguntou, carinhosamente, a professora. Respirei fundo e disse:
- Sim... Algumas vezes, eu gosto de fazer as pessoas rirem e falo sem pensar, mas não é por maldade... Nunca me importei muito com o julgamento das pessoas ou com o que elas pensam de mim, mas... Se ferir alguém, tentem não levar a sério, pois nem eu me levo a sério... Se vocês tiverem isso em mente, verão que sou uma pessoa legal e uma pessoa que vale a pena conhecer. É só isso que queria acrescentar, professora. Obrigada! – a sala me aplaude e eis, então, que finalmente, ao sentar novamente à minha carteira, aqueles olhos azuis me encontram, mas não mais com raiva e sim, com curiosidade, como se tentassem me entender e estivessem confusos...
Eu percebo os olhares e os devolvo com os meus e com sorrisos largos e espontâneos, sempre mostrando os dentes.
Não era a primeira vez que me apaixonava, mas à primeira vista, daquele jeito, sim e aquele menino, realmente, era muito esquisito. Engraçado até. Ele ficava desconsertado com meus olhares e sorrisos e pela primeira vez, vi aqueles olhos brilhando vivos e felizes e um sorriso tímido de canto de boca. Foi o primeiro de muitos sorrisos que roubei daquele “vampiro”, no “cemitério” e me alegro, até hoje, por isso.
Nossa! Até que escrever em um diário não é assim tão chato quanto pensei. Continuarei amanhã, fazendo esse resgate da nossa relação, para relembrar tudo o que houve de bom e aonde foi que erramos, ou melhor, que eu errei e que não consigo mais roubar tantos sorrisos hoje...
Melhor ir dormir, pois terei um longo dia pela frente, amanhã no trabalho, e tenho que preparar o café e lanche das crianças na escola logo cedo.
Carolinda e sempre.