Rosinha, sempre “inha”, é menina e aprendeu, desde cedo, a sonhar com o casamento: suas brincadeiras de comidinha e de boneca já indicavam o quanto ela seria a esposa ideal, bela, recatada e do lar, boa mãe, gentil e muito bem-educada e os contos de fadas a ajudavam a sonhar com o príncipe encantado, quando crescesse. A figura masculina aparecia em suas brincadeiras como marido e pai amoroso.
Azulão, sempre “ão”, é menino aprendeu a lutar pelo o que quer: seus brinquedos de armas brancas e de fogo, bonecos de robôs que se transformam em carros e de heróis musculosos já mostravam o ideal o tipo de homem que ele deveria ser – forte, destemido, desbravador, lógico e racional. A figura feminina só aparecia em suas brincadeiras porque eles tinham que “salvar a moça em perigo”.
Rosinha cresce e na sua adolescência, ouve muitos conselhos de “não dar no primeiro encontro”, não se tocar e conhecer o seu próprio corpo porque é feio... A preservar sua virgindade o máximo possível, pois castidade é sinônimo de pureza e é muito importante que a mulher se mantenha pura. Ela ouve até, dos parentes mais velhos e conservadores, a só ter suas primeiras relações sexuais depois do casamento, porque “é o que uma moça direita faz. Ela tem que zelar pela sua própria honra. Tem que se dar valor e tomar cuidado porque os homens só pensam naquilo.” Ela também aprende que sua prima Amarelinha é uma puta, comportamento digno de reprovação, pois ela já tem 16 anos e não é mais virgem, já ficou com uns meninos e ser puta é uma das piores coisas e uma das maiores ofensas a uma mulher.
Azulão cresce e na sua adolescência, ouve dos pais “prendam suas cabritas porque meu bode está solto.” Aprende que ele tem que explorar e viver sua sexualidade o máximo possível e que o que vale mais é a quantidade de meninas que “já pegou” porque “quanto mais experiências, melhor”. Quanto mais cedo perder a virgindade, melhor, pois um homem mais velho e virgem é motivo de piadas. Alguns parentes mais velhos e mais conservadores estimulam que ele vá para um cabaré e tenha sua primeira vez com uma prostituta, pois quanto mais rápido perder essa virgindade, melhor. Ele também aprende que seu primo Verdão passou a ser chamado de Verdinho porque já tinha 16 anos e não pegou ninguém ainda. Por causa disso, ele é tratado como um grande bobo e que ser comparado a algo feminino (florzinha, menininha, bonequinha, etc) são as maiores ofensas a um homem.
Até que, aos 20 anos, Rosinha e Azulão se conhecem e se apaixonam...
Rosinha, encantada com Azulão, tão belo e forte, se pergunta se seria esse, finalmente, o príncipe encantado que ela tanto sonhou em conhecer, desde a infância. O homem com quem ela poderia casar, ter filhos e, como num conto de fadas, “viver feliz para sempre.” Ela sonha com um futuro ao seu lado.
Azulão, encantado com Rosinha, tão bela e meiga, se pergunta como ela será na cama e se imagina fazendo amor com ela todos os dias. Ele não pensa muito no futuro e sim, no que ele quer fazer com ela em breve.
Ela e ele têm a primeira noite de amor juntos.
Ele percebe a pouca experiência que ela tinha e ao ela confirmar isso, ele se sente empoderado, porque estava ficando com uma mulher “pouco rodada”, mas acha o sexo razoável. Como ela é uma moça muito legal e ele estava gostando dela, com um pouco de paciência, ela iria aprendendo mais e eles iriam se acertando.
Ela nem sequer se questiona se ele já teve muitas mulheres antes, pois isso não é muito importante para ela, mas por ter poucas experiências sexuais e por ter ficado com poucos homens que se importam com o prazer feminino, ela considera aquele momento mágico e lindo e, cada vez mais, vai tendo a certeza de que ele é o homem da vida dela.
Eles namoram por dois anos e a ideia de casamento já passa pela cabeça de Rosinha, que já dá algumas indiretas para seu namorado. A família também a pressiona, dizendo que ela “já está numa idade boa para casar” e alerta que se case logo, senão, “vai ficar pra titia.”
Azulão desvia do assunto e começa a dizer o quanto o namoro deles “estava bom como estava” e que não havia a necessidade de se casar. A família e amigos dele sugerem que ele “pule fora”, que ele vai se acorrentar e perder toda a liberdade.
Azulão começa a agir de forma mais esquiva, com medo da ideia de se casar, mesmo tendo sentimentos por ela e mesmo que o sexo deles esteja ótimo. O medo de perder a liberdade o invade e ele passa a procurar outras mulheres, pois já estava com ela há tempo demais e “é sempre bom dar uma variada, né?”
Rosinha estranha a atitude do parceiro, mas ela pensa que com insistência e com a força do amor, ela iria convencê-lo de que era a coisa certa a se fazer e que um dia, ele olharia para ela e reconheceria, também que ela é a mulher da vida dele. “O meu amor vai mudar a cabeça dele.”
Rosinha tanto insiste que consegue e eles se casam. É “o dia de Rosinha”: o casamento perfeito, na igreja perfeita, com as flores perfeitas, com o vestido perfeito e a maquiagem perfeita... Tudo como ela havia planejado.
Azulão olha em torno dele como se fosse um alienígena, colocando os pés na Terra pela primeira vez e não tem nem ideia de todo o trabalho que Rosinha teve de planejar tudo aquilo, mas sabia que a cerimônia custou caro e nossa... Como ela estava radiante e deslumbrante naquela noite!
Depois de todas as festividades, a tão sonhada lua-de-mel, em outro lugar, regada a muito amor. Foram momentos únicos na vida do casal.
Após a lua-de-mel, finalmente, vem o casamento de fato, como ele é: a convivência, onde vemos todas as virtudes e defeitos da(o) outra(o). Todas as manias e enxergamos a(o) outra(o) tal como ela(e) é.
Azulão não conseguia entender porque Rosinha vivia reclamando e achou que ela mudou muitos depois do casamento e pra pior: não se cuidava mais... Estava sempre estressada... Não era mais a mulher sorridente e meiga com quem ele se casou...
Rosinha não conseguia acreditar que seu príncipe havia se transformado num sapo. “Ou será que ele sempre foi um sapo e eu nunca percebi? Ou será que eu o transformei num príncipe, sob meu olhar apaixonado?” De fato, ela havia mudado, pois ela não tinha tantas obrigações assim quando era mais nova. Ela não só tinha o seu trabalho numa empresa, como tinha que limpar a casa, cozinhar, etc e ele não ajudava, sequer, lavando o próprio copo, onde bebeu água.
Ele está infeliz no casamento, dorme com outras mulheres, mas não pensa em se separar...
Ela está infeliz no casamento, mas mantém a fidelidade e quando descobre que é traída, desde antes do casamento, já começa a falar em divórcio...
Rosinha já teve a oportunidade de beijar e dormir com homens que lhe ofereceram carinho, durante o casamento, mas negou, mesmo infeliz, porque é importante, para uma mulher, agir corretamente e com honra. Se ficasse com um outro homem, não se sentiria em paz consigo mesma e se descobrissem, provavelmente, seria chamada de ”puta”, aquele adjetivo abominável que aprendeu desde criança.
Azulão já teve a oportunidade de beijar e dormir com mulheres que lhe ofereceram carinho, durante o casamento, mas recusou algumas oportunidades apenas, porque é importante, para um homem, mostrar o quanto é homem, ficando com várias mulheres e demonstrando energia sexual intensa. Se recusasse e descobrissem, seria chamado de “viadinho”, entre outros adjetivos femininos terríveis que aprendeu desde criança.
Ela agiu conforme aprendeu a agir desde criança... Ele também...
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Estudos revelam que o casamento é mais benéfico para o homem do que para a mulher (https://oglobo.globo.com/sociedade/casamento-mais-benefico-para-homens-do-que-para-mulheres-revela-estudo-16425195).
No Brasil, as pessoas vêm se casando menos e se divorciando mais. Em 2018, foram registrados 385.246 divórcios (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/12/04/numero-de-casamentos-cai-16-e-divorcios-aumentam-32-entre-2017-e-2018.htm ).
5,5 milhões de brasileiros não possuem o sobrenome do pai na certidão de nascimento (https://exame.abril.com.br/brasil/brasil-tem-5-5-milhoes-de-criancas-sem-pai-no-registro/ ).
As meninas ainda fazem mais atividades domésticas do que os meninos e é um dos motivos delas receberem menores salários quando crescem (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/08/meninas-fazem-mais-tarefas-em-casa-do-que-meninos-mas-ganham-mesadas-menores.shtml ).
Todas essas narrativas têm um fator em comum: o de gênero.
Desde cedo, aprendemos que “mulher é assim” e “homem é assado” e ninguém para se questionar como isso foi definido e a quem isso beneficia. Apenas aceitam e naturalizam algo, com a frase conformista de “sempre foi assim” quando, na verdade, se trata de construções sociais.
É por isso que a Simone de Beauvoir diz que “não se nasce mulher. Torna-se” e, de fato, ninguém nasce já gostando da cor rosa, a querer ser como uma princesa e tudo o mais. Tudo isso vai sendo ensinado e mesma coisa para os meninos, logo, é possível dizer que a educação sexual já existe – se molda meninas e meninos para falar e agir de um jeito e gostar de uma cor específica.
Quando alguém fala de “ideologia de gênero”, além de estar falando uma besteira sem tamanho (pois está se baseando numa fake news), está colaborando para que essas formas, que já são ensinadas, se perpetuem e temos que ensinar nossos meninos a também cuidarem dos afazeres domésticos, a serem carinhosos e a serem bons pais e temos que ensinar as nossas meninas a amarem e conhecerem o próprio corpo, a escolherem aquilo que ela quer ser e a serem independentes nos relacionamentos amorosos.
É só a partir dessa educação que teremos pessoas mais conscientes e colaborativas para um casamento saudável, para um casal que divide responsabilidades em casa e pais amorosos, que compartilham os cuidados com os filhos. Por isso que a educação sexual é importante, além de descontruir conceitos bobos de que se um menino tem comportamento afeminado, ele deve ser diminuído ou odiado e se uma menina tiver comportamento masculinizado, também. A violência que LGBTs sofrem vem da infância e/ou adolescência. 73% de jovens LGBTs sobrem bullying na escola (https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/2017/10/73-dos-jovens-lgbts-da-america-latina-sofrem-bullying-nas-escolas-revela-pesquisa )
É por tudo isso que precisamos de educação sexual: para que narrativas como essa fiquem no passado e sejam tão chocantes, absurdas e esquisitas, para as próximas gerações, quanto relatos de tipo: “você acredita que nos Estados Unidos, houve uma época em que os negros sentavam atrás nos ônibus e que era tudo separado para negros e brancos? E tudo para os negros era ruim ou de baixa qualidade e tudo para os brancos era melhor. Já pensou? Só porque são negros?!? Quanta ignorância do povo na época, né?”
Obs.: sei que existem exceções, mas esses são os moldes e clichês que ensinam para a gente e que, infelizmente, ainda são muito seguidos hoje. Não seria melhor se não houvessem estereótipos e se cada um construísse a sua própria forma de ser e de ser feliz, sempre respeitando (a)o outra(o)?
(Daliana Medeiros Cavalcanti - 25/01/2020)
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