Anormalidade Normal

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Tradução: "nota médica - você não é normal"


(Daliana Cavalcanti – 07/02/2023)


O que é “normal”?

O dicionário Michaelis define o termo como “1 Conforme a norma; regular. 2 Que é comum e que está presente na maioria dos casos; habitual, natural, usual. 3 Tudo que é permitido e aceito socialmente. 4 Diz-se de pessoa que não tem defeitos ou problemas físicos ou mentais”

O Priberam concorda e o Aurélio, além de repetir essas definições, trouxe o seguinte: “Que se comporta ou age de uma maneira considerada aceitável ou adequada. Indivíduo que segue normas ou se enquadra dentro do considerado aceitável social e moralmente.”

Agora que sabemos o conceito dessa palavra, convido-os(as) a uma reflexão: quem estabeleceu o que é e o que não é normal? Mais ainda: o “normal” é algo absoluto ou relativo? Quem se beneficia com a normalidade? E quem são as pessoas que se prejudicam, por serem vistas como “anormais”?



Reflexões como essas me fazem compreender o que a Bárbara Biscaro comentou que “normal” e “natural” são palavras muito perigosas e complexas, porque dá margem a muitas interpretações e separa as pessoas entre “certas” e “erradas”, e nem sempre, as coisas funcionam desta forma. Em alguns casos, isso pode ser aplicado, mas em outros, é puro achismo ou crença pessoal e, infelizmente, as pessoas não estão mais sabendo diferenciar as coisas. 

A tendência atual das pessoas confundirem fatos com opiniões é preocupante e, pior ainda, é quando confundem opiniões com preconceitos e/ou discursos de ódio. Essa sociedade líquida onde vivemos assusta porque as pessoas patinam nas incertezas e se desesperam porque agarrar a conceitos pré-estabelecidos está, cada vez, mais difícil.


“Ok, Dali. Mas por que todo esse rolé? Aonde você quer chegar?”

Certo tempo atrás, estava eu no Kwai, um desses aplicativos de vídeos curtos, assim como o Tik Tok, e na busca por novos conteúdos (afinal de contas, o algoritmo está programado para mostrar sempre as mesmas coisas que você gosta de ver), caí num vídeo de um homem trans BELÍSSIMO, muito feliz em ser quem é e fui inventar de ler os comentários...

Gente... O que tinha de comentários transfóbicos me assustaram! Pessoas rindo e fazendo piadas, como “não tem o princiPAU" eram maioria e havia pouquíssimas pessoas elogiando aquele homem...

Ou seja: fazer chacota de um ser humano, que está apenas existindo e sendo feliz, é “aceitável”, mas várias pessoas se unindo para odiar alguém que nem conhecem, carregadas de ódio e vomitando preconceitos não as incomodava. Aliás, elas se achavam muito corretas e essa convicção de atacar um único ser, porque ele “não aceitou o sexo que Deus lhe deu” as cegava COMPLETAMENTE da violência que estavam reproduzindo.


Às vezes, eu me pergunto se esse “exército de Deus” acha que ele é incompetente... Só pode! Não dá para ter ambas as coisas ao mesmo tempo: ou ele é onipresente, onipotente e perfeito em suas decisões, ou ele é um ser completamente indefeso, que precisa de outras pessoas para julgarem por ele, porque ele, por si só, é incapaz de dar um veredito correto.

Ou isso, ou as pessoas se julgam tão boas, tão “livres de pecado” e “intérpretes infalíveis da vontade divina”, que apedrejam todes os(as) “pecadores(as)” que lhe convêm, se esquecendo de olhar no espelho e criando uma espécie de “hierarquia do pecado”: uma pessoa LGBTQIA+, que está apenas vivendo e amando é, para muitos, algo muito mais odioso do que um homem hetero que trai e espanca a esposa.

Por mais que digam que “não, não é assim”, é embasbacante ver o quanto a existência de alguém dessa crescente sigla desperta uma indignação muito maior nessas pessoas do que a violência conjugal e/ou o feminicídio que, para alguns, é algo tão “normal”, que ainda tem quem utilize a frase “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.


Para vocês verem como o preconceito e hipocrisia viraram normas, faz tempo que tinha começado a escrever esse texto (mês passado, acho), mas, agora mesmo, ao continuá-lo, vi uma postagem da Thabatta Pimenta, mulher trans na política, que sofreu transfobia, sendo impedida de utilizar o banheiro do Via Direta, no final do ano passado e hoje (dia 07/02/2023), teve a sua conta do Tik Tok bloqueada porque postava vídeos com seu irmão, que é uma pessoa com deficiência. Motivo? Porque ele precisa usar fraldas e as pessoas não gostam de colocar a mão na consciência e sair de suas bolhas. Porque “feria os padrões da comunidade”, ou seja, fugia da norma: as pessoas não querem ver a realidade das vidas resilientes de pessoas trans, negres, indígenes, PCDs, gordes, etc – só querem ver “os padrõezinhos”, carregados de filtros, fazendo coisas aleatórias e mostrando uma perfeição que não possuem.



Esse episódio que a Thabatta viveu, me fez lembrar de quando eu tinha uma conta no Facebook, que criei em 2008, e coloquei boa parte da minha vida e memórias lá, mas por colocar muitas críticas políticas (creio que foi isso), minha conta foi bloqueada, JUSTAMENTE no dia em que minha queridíssima prima morreu de COVID-19 e a forma que eu sempre tive de desabafar, desde que era criança, era escrevendo, e eu tive minha voz calada e sufocada nesse dia, porque meus pensamentos também “feriam os padrões da comunidade”. Até hoje, não consegui recuperar essa conta e criei uma do zero.

Interessante como críticas ao racismo, a governos autoritários, a assédios sexuais que sofri ou vi outras pessoas sofrendo e várias outras coisas transgridem esses padrões, mas disseminar todo esse ódio “tá de boas”.


Me questiono quais os padrões que as redes sociais pretendem manter, até porque eu fiz várias denúncias de todas essas falas terríveis, nas quais algumas se configuram e se enquadram como CRIMES e NADA foi feito...

Fora das telas dos desktops e dispositivos móveis, em tempos atuais e longínquos, não é/era muito diferente: quando eu era adolescente, nos anos 90/2000, em que não tinha toda essa tecnologia, que faz com que as pessoas esqueçam que por trás da tela, existe um ser humano, eu convivia com “a galera de preto”, que eram adolescentes, como eu, que tinham um visual mais do rock, j-rock, gótico ou do metal e as pessoas eram bem rápidas em julgá-las como “satanistas e drogadas” e, na maioria das vezes, nem eram – era só o visual, que não é habitual para uma cidade praieira e conservadora como Natal (estamos em 2023 e, infelizmente, isso não mudou muito) – , mas se esquecem que em festas de ritmos da moda, rola muita droga e que “engravatados, ricos, com caras de pessoas sérias e corretas” também podem ser usuários, inclusive, de entorpecentes muito mais pesados do que a maconha.



Aliás, nem todo mundo que consome drogas é, necessariamente, uma má pessoa – muitas vezes, só estão querendo se divertir e/ou um subterfúgio para escapar um pouco da dura realidade, mas não fazem mal a ninguém (só a si mesmas).

Aliás, frequentemente, esquecemos que existem drogas lícitas, como o cigarro e o álcool, que são normalizados, mas não classificam esses(as) usuários(as) como drogados(as) e que existem substâncias muito mais viciantes e nocivas do que a cocaína, como o açúcar, que todo mundo ingere, em uma medida ou outra.



Aliás, nem todes que saem por aí, “arrotando santidade” são pessoas que, realmente, fazem bem aos outres. Muitas vezes, essas pessoas “tão normais” são terrivelmente castradoras e podem ser BEM piores que criminosos, porque assassinam almas...



E aí, eu volto a perguntar a vocês, cares leitores: o que é o normal? Quem estabeleceu o que é e o que não é normal? O “normal” é algo absoluto ou relativo? Quem se beneficia com a normalidade? E quem são as pessoas que se prejudicam, por serem vistas como “anormais”?

Difícil responder, mas de uma coisa, eu sei: no presente momento, vivendo numa sociedade tão podadora, eu prefiro ser aquela estranha flor de lótus, que nasce, cresce e resiste em meio à lama.

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