Nossas origens e o Dia da Consciência Negra

sábado, 26 de novembro de 2022


(Daliana Medeiros Cavalcanti - 26/11/2022)

O mês de novembro é muito importante para a luta pelos direitos humanos de pessoas negras e fiquei pensando no que postar (se ia criar alguma arte ou algo do tipo) e me lembrei que faz algum tempo que venho pensado em postar algo sobre meu teste de ancestralidade e aí, resolvi juntar os temas.

“Mas Dali, tu nem é preta, menina! O que uma coisa tem a ver com a outra?”

Sim. Não sou negra, de fato, mas muito se engana quem acha que o Dia da Consciência Negra é uma luta única e exclusiva deles(as) – o famoso “eles(as) que lutem”. – Não! De forma alguma!

Enquanto pessoas inseridas na sociedade humana, o que acontece nela também tem nossa parcela de responsabilidade, e é aí que pergunto a meus amigos, amigas, colegas e familiares brancos e brancas: o que nós estamos fazendo para contribuir para um mundo mais justo e menos preconceituoso?

Mesmo não sendo negros(as), é importante e necessário termos consciência de que mesmo com muitos avanços na luta por direitos, muitos(as) negros(as) AINDA sofrem as sequelas de todos os males que seus/suas ancestrais passaram, na época da escravidão, por incrível que pareça.

Deixe-me fazer uma pequena recapitulação histórica: sabemos que durante séculos, muitos negros e negras foram traficados da África para o mundo inteiro, mas, sem dúvida, o Brasil foi o país que mais recebeu essas pessoas, que foram escravizadas e passaram pelos tratamentos e torturas mais desumanas que podemos imaginar!



Nessa época, Portugal colonizava o Brasil e estava prosperando, mundialmente, à custa de muito sangue negro e indígena, e dos recursos que exploravam daqui e traziam para a metrópole. Muitos negros e negras fugiam e se rebelavam, tentando libertar a si e aos seus semelhantes, mas muitos foram perseguidos e mortos e, durante muito tempo, os livros de história fizeram questão de ocultar esses mártires e atribuíram a libertação à Princesa Isabel, que assinou a Lei Áurea.

De fato, essa lei foi criada e entrou em vigor, mas é muita inocência acreditar que “foi bondade, porque, perceberam os horrores que fizeram ao povo negro”. Se eram tão bondosos, por que escravizaram outras pessoas, em primeiro lugar? Não, senhor: foi por pressão de muitos países, principalmente, da Inglaterra, que Portugal se viu forçado a fazer isso.

A Inglaterra estabeleceu o fim da escravização no mundo por interesses meramente econômicos e o Brasil, ainda foi “malandro” e enganou os ingleses, dizendo que "as naus que estavam partindo eram pra caçar e parar as outras embarcações que realizavam o tráfico negreiro", mas era tudo encenação. Foi daí que surgiu a expressão “para inglês ver”, pois a escravização foi muito lucrativa para Portugal e não era interesse deles parar, por isso, criavam leis só para os ingleses aliviarem as pressões para a escravização terminar, mas continuavam com o tráfico negreiro "na surdina". No entanto, não puderam sustentar a mentira por tanto tempo e, então, assinaram a Lei Áurea à contragosto mesmo. Não foi à toa que fomos o último país do continente Americano a abolir a escravização...

Retrato do Brasil, de Ângelo Agostini

Anos em que a escravização foi abolida nos países da América
Fonte: Jornal Nexo


Vocês já se pararam para perguntar “o que aconteceu com os negros e negras depois disso”? Bom... Eu explico: claro que eles comemoraram a libertação e ficaram felizes, mas... E agora? E depois? Para onde ir? Como vão se sustentar? Todos os problemas deles se resolveram com isso? E eis que eu respondo que, infelizmente, não... Os mais sortudos foram para os quilombos, mas, sem dinheiro, muitos acabaram na miséria, indo para a rua ou se amontoaram em lugares periféricos, onde construíram suas casas e assim, nascem as favelas.

E até hoje, ainda não é assim? Qual a cor da pele da maioria das pessoas que estão nas ruas e nas favelas, ou nas profissões onde menos se paga? Percebem como há uma continuidade de um padrão escravagista, de uma elite branca e podre, que está acostumada a explorar uma mão-de-obra, majoritariamente preta e indígena?

Repito: se Portugal e a elite brasileira não fossem obrigadas a obedecer às imposições da Inglaterra – que fez isso só pra se beneficiar. Ao fazer isso, Portugal “quebrou”, pois apesar de eles “cantarem de galo”, ainda hoje, como se fossem muito superiores a nós, eles só prosperaram por causa da gente, eles continuariam com a escravização, sem um pingo de peso na consciência (até hoje, tem estátuas no Brasil e em Portugal dos bandeirantes, tratando-os como se fossem heróis!), o que é mais chocante e absurdo.

Crânios são colocados ao lado de estátuas de bandeirantes para ressignificar a história de São Paulo


Basta olhar para as novas formas de emprego, sem segurança trabalhista alguma e ver que “mudaram as estações, nada mudou”, no pensamento elitista. Eles até vêm com “conversas bonitas” para confundir a cabeça do trabalhador, dizendo que ele virou “um empreendedor”, que agora, “ele tem a liberdade de negociar com o patrão”, mas, na verdade, o que fizeram foi retirar a segurança que ele tinha, para que “não reclame, trabalhe”, fazendo-o defender os interesses dos poderosos e não o próprio, ou seja, no final das contas, quem lucra continua sendo a elite escravagista e o trabalhador só teve mais atribuições e menos direitos e dinheiro.

Claro que existem pessoas brancas e pobres que também estão inseridas neste contexto trabalhista e que elas também merecem ter seus direitos garantidos, mas essa dívida histórica que temos faz com que, mesmo sendo pobres, nós tenhamos algumas vantagens ou privilégios sobre eles. Você já foi impedido(a) de entrar em algum lugar ou já disseram que você não podia fazer alguma coisa por causa do tom da sua pele? Já foi perseguido numa loja em que entrou, por acharem que você é bandido(a)? Já foi espancado(a) por um policial, que achou que você era um(a) criminoso(a), mesmo sem prova alguma, apenas por causa de sua cor?

Por incrível que pareça, meus queridos e minhas queridas, se as respostas de vocês para todas essas perguntas foi “não”, assim como eu, nós somos privilegiados(as). Vocês entendem agora que quando falo de “privilégios”, não estou falando apenas de riqueza e sim, de direitos humanos básicos e diferença de tratamento?

Fonte: Portal G1


Parece ridículo, não é? Para nós brancos(as), é inacreditável saber que entrar numa loja sem ser perseguido(a) por um segurança ou atendente, uma coisa absolutamente normal, para nós, seja um privilégio, mas é sim, e quando a gente está distante dessa realidade, é muito fácil achar que é “mimimi”. É FACÍLIMO fazer isso, mas quando estabelecemos o diálogo com eles(as) e vemos DE PERTO o que acontece, vemos que “o buraco é muito mais embaixo” e que ser aliado(a) à essa luta é extremamente importante.

Certa vez, ia encontrar uma amiga minha no Via Direta e me atrasei um pouco, mas ao chegar lá, ela havia me contado que, enquanto me esperava, passeou pelo shopping e as atendentes e o segurança de uma loja, cujos produtos ela achou interessante e entrou para olhar melhor, ficaram de olho nela, seguindo-a, como se ela fosse uma meliante, pelo simples fato de ser negra... Me senti mal quando ela me contou a história, porque nunca imaginamos que algo assim possa acontecer com alguém tão próximo e, perdida e em choque, fiquei sem saber o que fazer, mas a acolhi e conversamos bastante e fiquei feliz em vê-la melhor e sorrindo novamente.


7 em cada 10 negros sofreram preconceito em loja, restaurante ou mercado
Fonte: Revista Exame


Quando contei essa história para outra amiga minha, ela me ensinou lições valiosas e que eu não fazia a menor ideia: disse que em cidades como o Rio de Janeiro, até existem umas “regrinhas”, como, por exemplo: se você convidar um amigo ou uma amiga negra para a sua casa, tem que já estar preparada com a chave, bem próxima ao portão, para abrir logo, assim que ele(a) chegar, porque aí, ele(a) não corre o risco de sofrer algum ataque racista, pois tem policiais que podem achar que é alguém tentando roubar ou invadir sua casa. Se soubesse dessa lógica antes, teria me preparado e corrido para evitar que ela sofra com esse tipo de estupidez.

Umas amigas me relataram que sempre tinham que andar muito bem arrumadas e com os documentos sempre próximos, para que não as julgassem como criminosas, por causa do tom de pele... Isso é surreal para mim, pois tem dias que eu morro de preguiça de me arrumar e tenho esse “luxo” de andar esculhambada, porque sei que não me julgariam assim, mesmo se minhas roupas estivessem sujas, feias e rasgadas. No máximo, pensariam que eu sou “hippie” ou “good vibes”.

E noooossa... Quando essas pessoas são pobres, as histórias são ainda mais chocantes! Já ouvi coisas como “ah! No meu bairro, vez ou outra, tem troca de tiro dos traficantes com a polícia ou de briga entre as gangues. É normal. Já mataram pessoas na minha rua” e, nessas brigas, muitos inocentes morrem, justamente, pelo pensamento racista de associar negros a bandidos. Os jovens negros são os que mais morrem, vítimas de armas de fogo e da violência policial.


 
Agora, me digam: conseguem imaginar esse cenário no bairro onde vocês moram? Eu não consigo e olha que meu bairro não é mais tão seguro, quanto já foi um dia!


“Ok, Dali. Percebo que o que vc fala faz algum sentido. O que eu posso fazer para contribuir com a causa, de alguma forma?”

A primeira coisa a se fazer é passar por uma série de desconstruções, pois todos, todas e todes nós tivemos uma educação estruturalmente racista: fomos criados(as) ouvindo piadas racistas; aprendendo que “candomblé e umbanda são coisas do diabo”; falando palavras e expressões racistas como “inveja branca”, “a coisa tá preta”, etc.

Então, observar esses pensamentos e tentar mudá-los; evitar as frases acima e substituir por outras, com o mesmo sentido; e conversar educadamente com as pessoas (se elas estiverem abertas para ouvir, claro, porque quando não estão, qualquer diálogo é difícil) que falem essas gírias, explicando porque não é legal dizê-las, é um bom começo...

Outras atitudes legais são: divulgar, comprar e/ou incentivar o trabalho de homens e mulheres negras; ler mais autores(as) negros(as); denunciar casos de racismo, quando possível; e defender as cotas raciais.



“Dali, você falou bastante sobre o racismo, mas e as nossas/suas origens? O que tem a ver?”

Agora, finalmente, entrarei nesse assunto: curiosa sobre minha ancestralidade, aproveitei uma promoção e fiz aqueles testes de DNA. O resultado, não me impressionou tanto – 65% da minha genética é europeia, vinda majoritariamente da Europa Ocidental; 12% é do Oriente Médio e Magrebe; 10% das Américas; 7% Judaica e 6% da África.




Eu sabia que a maioria dos meus genes seria oriundo da Europa, mas não achei que a porcentagem seria assim tão alta: achei que teria uns 40% ou 50%, mas eu sabia que ia pontuar algo, nem que fosse pouco, do Oriente Médio (por uma questão histórica, afinal de contas, a Península Ibérica foi invadida pelos mouros), das Américas (porque os indígenas são os povos originários daqui) e da África.

Esse último continente, o motivo é bem óbvio: a vida começou lá e o que eu achei mais legal é que os resultados do teste só comprovam essa teoria – a Eva Mitocondrial (muito fofo esse nome científico), ou seja, a primeira mulher que se tem notícia, e de qual todos nós temos alguma ligação ancestral, é uma mulher africana, logo, NEGRA.

Isso significa dizer que por mais brancos(as) que sejamos, temos, nem que seja 0,01% de sangue negro e isso é outra razão para considerar o racismo a coisa mais estúpida do mundo: ao ser racista, você está ofendendo a sua tátara-tátara-tátara...-avó, logo, é uma ofensa às suas origens, à sua família/ancestralidade e a si mesmo(a).

No final das contas, quem diria que a frase religiosa de que “somos todos irmãos” seria uma grande verdade?


E bom... Não sei vocês, mas eu não quero e nem gostaria de ver meus irmãos e irmãs sofrendo tantas injustiças, e é por isso que estou tentando ajudar como posso, aprendendo muita coisa sobre essas questões e fazendo esse exercício diário de autodesconstrução, para que as coisas que hoje são “privilégios” para mim, sejam os mesmos direitos que eles(as) merecem ter acesso.

Espero ter sensibilizado e ter causado reflexão em alguém e se, depois de tudo isso, ainda tem gente achando que é “frescura”, olhe... Sua humanidade e empatia são bem questionáveis, hein? Que tal reler e pensar mais um pouco?

Beijão e espero que tenham gostado!

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