Carta aos artistas: olhar, escutar e despir-se

quinta-feira, 25 de outubro de 2018


Boa tarde! Como estás?

Pode parecer estranho começar com uma pergunta que alguns irão responder e outros não, por estarem se relacionando com um papel ou com uma página virtual, mas quero lembrar que por trás das palavras, existe uma pessoa, que é esta que está digitando esse texto-diálogo com vocês e por isso, peço licença para me comunicar COM você: como você está?

No momento, estou atravessada por uma série de questões. São questões políticas, pessoais, filosóficas e artístico-profissionais, uma vez que escolhi a arte como profissão.

Este ano, entrei no curso de Mestrado em Artes Cênicas e, portanto, falo na condição de uma pessoa das artes cênicas, que está experimentando esse tipo de arte e, ao mesmo tempo, de alguém que esteve muito tempo fora, até encontrar este meio... Este percurso...

Neste sentido, cada vez mais, me enxergo como não apenas uma pessoa da música e da poesia, mas alguém do teatro. Ainda não me vejo como atriz, pois tenho muito o que crescer e aprender nessas relações com meu próprio corpo, que têm se desenrolado lenta e gradualmente e preciso de mais segurança para entrar em cena, expor o meu corpo e dizer com segurança e sem receios “sim. Eu SOU ATRIZ também”.

E por falar em corpo, não consigo deixar de admirar a relação que os atores têm com os corpos deles... Muitos desses alunos e professores estão conectados com os próprios corpos e são artistas que colocam o corpo a serviço da arte, a ponto de se despirem e mostra-lo tal como ele é: peitos, barriga, sexo, lugares com e sem pelo, cicatrizes, estrias, celulites, manchas, sinais, marcas de bronze... Corpos magros, “meio-termo”, gordos ou musculosos, de vários tamanhos e formas... Corpos que física ou abstratamente, estão nus e à disposição do público.

É fascinante essa relação com o corpo-mente que eles possuem e o ato de se desnudar requer muita coragem. Se despir para alguém é falar... É comunicar alguma coisa e escutar as reações do outro para com este corpo nu, sejam elas quais forem. As reações à nudez também são escutas do outro e dependendo da reação, comunicam pensamentos sobre aquele despir. E apesar de admirar a coragem desses artistas, confesso não conseguir ter a coragem necessária de fazer o mesmo fisicamente, mas me desnudo de outras formas.

Esses dias, tive muito contato com performances. Elas têm me provocado bastante e é impressionante a disposição do corpo em muitas dessas performances. Não deixo de admirar a coragem dessas pessoas e de admirar as mensagens que elas comunicam com seus corpos e sua criatividade artística e não deixo de lamentar as mentes das pessoas que repudiam essas manifestações, em pleno século XXI, da era chamada de “pós-modernidade”, mas com pensamentos medievais, que ainda prevalecem em nossa sociedade.


Há dias atrás, houve outra performance onde corpos semi-nus, vestindo apenas suas roupas íntimas estavam pintados de branco, com várias suásticas ao redor do corpo, na cor preta. A performance consistia em outras pessoas lavarem o fascismo desses corpos com água e ervas cheirosas, como alecrim e alfazema. Tive a alegria e orgulho de participar dessa performance, lavando um desses corpos: o de uma grande e querida amiga.

E hoje, após a aula de Canto para o Ator I, um colega foi fazer uma performance contra um certo candidato à presidência da República, com pensamentos fascistas e para isso, ele molhou o chão e colocou as tintas verde e amarela, junto com fitas adesivas que perguntavam “você apoiou?” e se debruçou sobre aquelas águas coloridas, que constantemente secavam devido ao enorme calor, completamente nu. Em suas costas, havia escrita a palavra “coitadismo” e havia um pedaço de cabo de vassoura, também pintado de verde e amarelo, entre suas pernas e vários pedaços de pedras ao redor dele.

Ao vê-lo em cena e ao observar a própria maneira no qual eu olhava para aquele corpo nu, me alegrei por perceber que havia aprendido algumas das mais importantes lições que o teatro havia me ensinado: a olhar para o outro sem julgamento. É difícil fazer isso quando se tem uma mente tão inquieta, como a minha, mas me coloquei em estado contemplativo para tentar imaginar o que todo aquele conjunto de coisas estava tentando me comunicar e de que maneira aquela performance me atravessava.

Era curioso e engraçado perceber, claramente, a diferença entre quem era das artes cênicas e quem não era. Os atores, assim como eu, olhavam sem pudor, rodeavam aquele corpo prostrado e refletiam sobre aquela performance. As pessoas que não eram das artes cênicas não sabiam lidar com aquilo e ou olhavam com nojo, ou olhavam com vontade de rir ou, simplesmente, viravam o rosto porque queriam esconder sua vontade de olhar aquele corpo masculino, musculoso, nu e belo.

Mesmo atribuindo essas características físicas ao corpo do meu colega, não havia erotismo ali e é incrível a capacidade que algumas pessoas têm de não conseguirem separar uma coisa da outra e sempre atribuírem essas performances à imoralidade... Ao desprezível... Ao abominável... Ao pecado...


Sei que hoje, quando passo pelos lugares onde essas performances aconteceram, não vejo apenas manchas e tintas e sim, resíduos de corpos em estado líquido, que protestaram e se posicionaram no mundo, de maneira artística, e que marcavam o chão com o calor do furor que assolava suas almas descontentes e questionadoras. Aqueles resquícios de corpos que coloriam o chão era o passado se fazendo presente. Um registro imagético de manifestações legítimas, feitas por pessoas apaixonadas pela arte e pela vida, inclusive, daquelas que pensam que isso não é arte.

Nesse aspecto, é interessante evocar os pensamentos lógicos e exatos de minha primeira formação, em Bacharelado em Sistemas de Informação, que é também parte de mim e de minha história, enquanto também amante dos números e dos cálculos: é apenas um corpo nu. Só. Sem mais, nem menos e um corpo nu não deveria ser uma ameaça. Qualquer coisa que seja vista para além disso é interpretação pessoal e que tem a ver com o olhar de quem observa e suas respectivas individualidades e crenças. Se alguém se despe e você se incomoda com isso, talvez o problema não esteja no corpo nu do outro e sim, no seu corpo vestido e na sua mente revestida.

Mais uma vez, quero fazer associações em um âmbito metafórico. Se alguém se abre para você, é importante que você se coloque nesse lugar de receptividade e abertura. Essa nudez pode ser um jogo teatral... Ou um recital... Ou um amigo te contando algum problema... Se despindo para você das roupas que o cobrem e o sufocam... E nosso dever como artistas e humanos é acolher e abraçar aquela nudez, sem julgamentos. Escutar...

E então, me deparo com outra importantíssima lição, tanto do teatro, quanto da música: escutar. Escutar o outro nem sempre é fácil, ainda mais numa época em que todos querem falar, isolados em suas redes sociais, mas ninguém está receptivo ou pronto para ouvir. A não escuta hoje é tão gritante que me deparo com absurdos. Amigos que sofrem e se encontram e então, o amigo A fala para o B “terminei com meu namorado e estou sofrendo” e eis que B responde “e eu que, quando chegar em casa, tenho uma pilha de louça para lavar, porque meu marido não me ajuda em nada e tenho um filho que não obedece, desarruma tudo e só falta destruir a casa?” As pessoas não se escutam mais e associando a nudez, como estava fazendo, isso é tão surreal quanto se as pessoas estivessem nuas, uma de frente para a outra e a pessoa A dissesse “não gosto do meu umbigo. Eu o acho muito grande” e a B dissesse “e o meu, que tá todo desajeitado porque eu coloquei um piercing e ainda não cicatrizou?” Cada um olhando o próprio umbigo, querendo falar sobre ele e não estando receptivo para olhar o umbigo do outro e ouvir as inquietações sobre essa parte do corpo alheio.


Curioso perceber somente agora que após treze anos cantando no Grupo de Ópera Canto Dell’Arte, quatro anos no Curso Técnico de Música, cinco anos no Bacharelado em Música e caminhando para dois anos e meio em teatro, essas artes (música e teatro) sempre me colocam num lugar de muita fala, mas muita escuta também. Confesso que já teci julgamentos sobre algumas pessoas, mas quando elas conversavam comigo... Quando elas se despiam para mim, eu compreendia o porquê de muitas coisas e ao contemplar a nudez delas, pude abraça-las e ajudar da melhor forma possível. Não ouvi-las, seria quase como se eu dissesse “vista-se, por favor, e vá embora daqui” e eu jamais faria isso com pessoas que precisam desabafar, ainda mais quando eu posso emprestar meus ouvidos e olhos a elas...

Meu canto é um desabafo... Uma nudez de alma onde exponho minhas cicatrizes e saio vitoriosa por enfrentar minha timidez. Talvez seja por isso que minha voz seja tão grande – as cicatrizes são muitas e a mudez também, portanto, se você ouve o meu cantar, te agradeço pela contemplação do meu despir e por emprestar seus ouvidos, momentaneamente, para abraçar este corpo-voz, com todas as suas belezas e defeitos que ele possui, mas que é o meu corpo e é o que posso oferecer a ti.

Portanto, caro leitor, a fins de agradecimento e reciprocidade, volto a perguntar: como vai você? Por favor, deixe-me abraça-lo nu... Despido de qualquer veste que esconde sua alma e encobre a centelha de vida que quer reluzir para fora de seu corpo e ilumina todo aquele que se dispõe a te contemplar, em toda a sua verdade, beleza e fragilidade, emprestando os bens mais preciosos que alguém pode oferecer para outro alguém que necessita desse desabafo: o tempo e a atenção.

Escutar é amar. Exercer a escuta é qualidade de quem ama e o amor é o sentimento que fala com os olhos da alma, toca com o ar e escuta com o coração.


(Daliana Medeiros Cavalcanti - 26/10/2018)

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