Frankenstein, Mary Shelley e a Rejeição

quinta-feira, 26 de novembro de 2020



Há anos atrás, havia assistido ao filme "Frankenstein de Mary Shelley", de 1994, dirigido pelo Kenneth Branagh e produzido pelo Francis Coppola, que havia me mostrado "uma outra versão do monstro" e eu mal sabia que aquele era o verdadeiro Frankenstein, baseado no livro da autora. Essa obra foi a primeira obra de ficção científica do mundo e foi escrita por uma mulher, numa época em que elas tinham que assumir pseudônimos masculinos para terem seus livros publicados, ou seus maridos levavam todo o crédito por algo que não escreveram. 

Trailer de Frankenstein de Mary Shelley:



Eu tenho umas listas de filmes e séries que pretendo assistir e entre elas, estava o filme da escritora inglesa "Mary Shelley", de 2017, dirigido por Haifaa al-Mansour e escrito por Emma Jensen e fiquei super-curiosa, porque gosto de saber da vida dessas mulheres que fizeram parte de nossa história e são tão pouco conhecidas ou estudadas.

Após assistir ao filme sobre a vida dela, tão marcada por muitas perdas, tristezas, rejeições e abandonos, deu-me uma imensa vontade de ler a obra-prima que a consagrou. 

Trailer de Mary Shelley:



Fazia muito tempo que não lia um livro de ficção/romance, pois, na maior parte do tempo, tenho lido textos acadêmicos e/ou matérias jornalísticas, falando sobre canto, teatro, acontecimentos atuais, reflexões, etc. Até já havia me esquecido o quanto essas obras de ficção me deixam tão ávida por leitura. 

Normalmente, sou uma leitora lenta, porque me perco em divagações e por ter outros afazeres que me fazem esquecer ou protelar os livros que estou lendo (inclusive, tenho muitos livros nessa situação, com leituras incompletas), mas esse, cujo arquivo possui 205 páginas no total, devorei em apenas um dia e me orgulhei muito disso! Só não foi um dia certinho porque fiz algumas pausas, uma delas bem longa, mas se não fosse isso, somando as horas de leitura, foi tudo em apenas um dia. 

Ao ler o livro e assistir o filme do Branagh e o outro da vida da autora, eu me questiono "por que diabos o cinema transformou o Frankenstein num monstro verde, burro e lento? A versão clássica cinematográfica mostra um dos monstros mais bobos que eu já vi e pela versão original da Mary Shelley, o Frankenstein tem NADA A VER com essa figura tão patética!"


Tanto o filme que retrata a vida dela, quanto a obra, me fizeram pensar no que a Clarissa Pinkola Estés, autora do livro "Mulheres que Correm com os Lobos" fala sobre o poder curativo do mito e da literatura como um todo e, de certa forma, como a história é fictícia, poderíamos dizer que se constitui num mito e, inclusive, o subtítulo dessa obra é baseada no Prometeu (o nome original da obra da Mary Shelley é "Frankenstein, ou o Prometeu Moderno), figura da mitologia grega que é um titã, filho de Jápeto e irmão de Atlas, tido como o criador da raça humana.

Prometeu moldando o homem através do barro
Ilustração: Mike Azevedo


Foi muito interessante observar as influências da autora, no filme, que a levaram a escrever a obra e uma delas foi a paixão que ela tinha pela tragédia grega, tendo "A Ilíada" de Homero como um dos objetos mais preciosos que seu pai possuía e por escassez de recursos, ele quase vendeu esse tesouro.

Para quem não conhece a história, eis a síntese: o cientista Victor Frankenstein deseja descobrir os segredos entre a vida e a morte, descobre sobre o galvanismo (estudo da eletricidade por meios químicos) e decide criar um novo ser humano em tamanho maior (2,30m) por motivos de estudo, mas ao dar vida a esse ser, ele fica tão apavorado que foge de sua criação e o abandona, pois viu que "havia dado luz a um monstro."

Aliás, um fato interessante é que “o monstro” não é chamado de Frankenstein em nenhum momento, porque ele sequer recebera um nome ao nascer. Frankenstein é o sobrenome de Victor, seu “pai”, portanto, o personagem é um sobrenome sem nome, dessa forma, tratarei a criação por Frankenstein e o doutor, chamarei pelo primeiro nome.


Na primeira parte da obra, nós lemos sobre a situação da criação de acordo com a ótica do Dr. Victor e na segunda parte, vemos sob a ótica do Frankenstein. A forma com que este último relata sua experiência e como foi aprendendo tudo sozinho, ao seu criador, me faz lembrar Calibã, da obra “A Tempestade” de Shakespeare (que é outra referência da autora): uma criatura de aparência hedionda, que todos sentem imensa repulsa e que é, por muitos, tido como um monstro, mas que têm alguma magia e uma delicadeza no modo de ver o mundo, bem como uma enorme sensibilidade... Algumas das falas mais bonitas de ambas as obras (“Tempestade” e “Frank”) são ditas, justamente, pelos “monstros”. 

São tantas as questões que me vêm à mente quando penso nesses filmes e livro, que é difícil saber por onde começar... 

Victor queria tanto entender o limite que separa a vida e a morte e por mais que tivesse fins benignos de prolongar a longevidade humana e que se esforçasse em "esculpir o ser perfeito", ele o constrói com restos mortais, cria um ser de aparência horrenda e se sente amaldiçoado por isso. Isso me faz lembrar, também, o dito popular “de boas intenções, o inferno está cheio.” 


O Dr. Victor ficou tão empenhado e obcecado com o seu novo intento que me faz pensar que “nossas obsessões criam monstros”. 

Penso, também, que a criação do Frankenstein seja um convite à reflexão sobre as coisas que ultrapassam "a natureza humana" e me vêm à mente algumas perguntas difíceis de responder: o que é a natureza humana? O que é natural?

Como o ser foi criado de uma maneira diferente da relação sexual que resulta no parto, ele é sobrenatural e, no entanto, sua rejeição revela muito da crueldade humana que depois, faz com que ele se torne no monstro que tanto dizem que ele é, devido à sua aparência.

Assim que nasceu, ele foi rejeitado pelo seu criador e, desde então, vagava pelo mundo, buscando o amor e a aceitação de alguém, mas bastava que olhassem para ele que as pessoas sentiam uma imediata repulsa e sequer o viam como um semelhante... Como um ser humano... E, em sua enorme sensibilidade, ele se mostrava muito mais humano do que os seres humanos, que foram incapazes de um só ato de bondade para com ele...


Isso me faz pensar também que ver seres ou pessoas como monstros é uma questão de perspectiva, muitas vezes, pois os humanos foram muito mais monstruosos com o Frankenstein por lhe negarem afeto do que ele com os humanos. Frankenstein machucou apenas as pessoas que eram caras ao Dr. Victor, por estar irritado com tamanha rejeição "de berço" e essa era a forma que ele encontrou de se vingar e chamar a atenção do seu pai, que depois passa a persegui-lo. Não é a melhor forma, evidentemente, mas "toda raiva tem uma tristeza escondida" e esses sentimentos nos cegam, muitas vezes e assim, nem o Victor enxergava a sua responsabilidade afetiva de dar um pouco de afeto a seu filho, nem Frankenstein enxergava a sua responsabilidade de deixar atrás o que não te serve mais e tentar viver de uma outra forma.

Também vale a pena ressaltar que Frankenstein fora criado já em forma adulta, mas ele aprendeu tudo sozinho: que o fogo queimava e machucava, mas que também o podia manter aquecido; aprendeu a falar e a ler sozinho e os trechos em que ele relata como ele aprendeu tudo isso e como ele via o mundo é de uma beleza encantadora e tão pura, digna do olhar de uma criança e eis outra coisa que me vêm à mente - apesar de sua forma adulta e gigantesca, ele é como se fosse uma criança, com poucos anos de idade e muitas crianças não têm muita noção da vida e da morte, nem do perigo, nem nada.

Assistir e ler a história do Frankenstein me faz lembrar das dores da rejeição... O quanto nós, muitas vezes, nos sentimos horrorosos(as) por não estarmos no padrão homem, branco, magro/fitness, heterossexual e jovem e o quanto nós, seres humanos, já lidamos com esse desprezo, em algum momento de nossas vidas, seja ele feito por uma pessoa específica ou pela sociedade.


O que precisamos compreender é que, na maioria das vezes, a rejeição tem mais a ver com quem rejeita do que com quem é rejeitado(a) e, se o caso for social, o problema está na sociedade e na sua estrutura racista, gordofóbica, homofóbica e gerontofóbica. 

Até lembrei de um momento em que o marido da Mary Shelley, no filme, pergunta "por que uma criatura remendada e grotesca e por que não um anjo?" e eu concordo com a opinião da autora, que não foi com essas palavras (pois ela questiona a vida deles, enquanto marido e mulher), mas com essa intenção: porque nossa vida nem sempre é perfeita, como um anjo. Ela se parece mais com o Frankenstein mesmo, que mesmo em sua notável imperfeição, é perfeita do jeito que é, com seus rasgos e retalhos, que nos tornam tão únicos(as).


Quantas e quantas vezes eu não me senti um Frankenstein porque reparavam o meu corpo gordo na praia ou na rua, de maneira descarada e com visíveis olhares reprovadores e até de nojo, tal como se eu fosse "o monstro"? Quantas e quantas vezes eu não me senti um Frankenstein por comentários gordofóbicos que as pessoas fazem sem saber ou sentir, sob a desculpa de "estou falando para o seu bem, porque me preocupo com a sua saúde"? Quantas e quantas vezes não me senti um Frankenstein por ser artista e considerarem isso "coisa de gente vagabunda"? Quantas e quantas vezes não me senti um Frankenstein por tantos amores que quis viver e só levei "nãos" e, alguns desses "nãos", eram por causa do meu corpo? Quantas e quantas vezes...?


Somente quem tem empatia e conhece as dores da rejeição conseguem ver o Frankenstein da forma extraordinária que ele é e que, nós mesmos(as) precisamos olhar para esse ser sobrenatural dentro da gente e amá-lo do jeitinho que ele é.

Nós precisamos desse olhar mais compassivo conosco, senão, podemos nos tornar o monstro que todos imaginam que o Frankenstein seja, por não acolhermos a nossa sombra e não nos conhecermos.

É, queridos(as)... Autoconhecimento dói. E quem disse que seria fácil? 

Tal como o "monstro", nós somos pedaços de nós mesmos e nossas histórias, que deixam marcas muito profundas e assim, vamos nos ferindo, nos fragmentando e nos remendando novamente, numa linda colcha de retalhos ou num belo vaso Kintsukuroi.


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