Preconceito TRANSlúcido

segunda-feira, 3 de outubro de 2022



(Daliana Cavalcanti - 21/09/2022)


Infelizmente, a ignorância humana nunca deixa de me surpreender... 

Hoje (dia 21 de setembro), eu acabei de ver um vídeo da candidata a Deputada Federal, Thabatta Pimenta, mulher trans, que ia utilizar o banheiro do Via Direta e acabou sendo barrada pelos seguranças.

Como se isso já não fosse ruim o suficiente, vi que o Novo Notícias não divulgou o nome do estabelecimento onde ocorreu o crime de transfobia e, para completar, foram inúmeros os comentários de pessoas parabenizando os seguranças por causa disso.

Mais uma vez, me deparo com tanta coisa errada que é difícil saber por onde começo, mas vamos lá...

É surpreendente o quanto o corpo e a vida do outro incomodam as pessoas: toda e qualquer pessoa que foge ao “senso comum”, acorda o velho espírito do “queimem a bruxa”, que vem desde a Inquisição e eis que faço a provocação: por que uma pessoa, que eu nem sequer conheço, me incomoda tanto?

“Ai, Dali. Mas ele nasceu homem, então, é homem. Deus o fez como homem”.

Antes de responder esse pensamento comum, deixe-me contar e mostrar a vida como ela é, ok? Sair da bolha e começar a enxergar o outro é importante. Pessoas que se identificam com o sexo no qual nasceram são chamadas de cisgênero ou, simplesmente, cis. Nós, cis, somos uma maioria privilegiada, pois todo mundo nos aceita onde quer que estejamos, entretanto, essa não é a realidade das pessoas transgênero, ou trans.

Alguns homens e mulheres trans já se entendem assim desde criança, mas outros(as) só descobrem depois de adultos(as). Dependendo do conhecimento que têm, da família e ambiente onde vivem, eles(as) podem aceitar isso mais rápido ou demorar mais, ou ainda, viver a vida lutando contra si mesmos(as), agradando a sociedade, mas se mantendo infelizes e, meus queridos e minhas queridas, não se enganem: recalcar não é “curar” e não há cura para o que não é doença.

Quando você inibe algo em si mesmo(a) ou em alguém, aquilo virá à tona em forma de alguma doença psicossomática ou psíquica somente, o que é muito pior do que a pessoa, simplesmente, se aceitar como é: um corpo que se transforma no que já está na mente e no coração.

Desta forma, quando se obriga alguém a “se submeter a uma cura gay” ou qualquer coisa do tipo, você está condenando àquela pessoa a uma vida de loucura e infelicidade e tudo isso porque você, um outro corpo, uma outra mente, com outras necessidades, não concorda que ele(a) viva e se enxergue da forma que ele(a) quer e quer impor a sua forma de ser e de ver o mundo. Faz sentido isso?

Faria sentido se eu torcesse pelo Palmeiras e obrigasse você, leitor(a), a torcer também, porque eu gosto do craque Fulaninho de Tal e porque o pastor da minha igreja disse que esse é o time abençoado por Deus? Não me interessa se o pastor/padre da sua igreja é do Flamengo e disse que “Deus é alvinegro”. Eu acredito que o certo é o Palmeiras, então, você tem que torcer pelo Palmeiras porque EU quero. Porque o que EU acredito é certo. Porque sempre foi o certo torcer pelo Palmeiras, afinal, a cor é verde, que remete ao Jardim do Éden, lugar de onde vieram os primeiros seres humanos criados por Deus, então, esse é o certo para MIM e não há discussão!

Percebem o quanto o exemplo acima mostra crenças egóicas, baseadas numa ÚNICA subjetividade e que são aspectos que podem funcionar para VOCÊ, mas não para o(a) outro(a)? Esse pensamento se aplica, inclusive, para religiões: ninguém é obrigado(a) a acreditar no mesmo que você. Tenha isso em mente ao lidar com outro ser humano.

Claro que identidade de gênero não é como torcer para times de futebol e a comparação foi bem grotesca, mas é incrível ver como as pessoas se utilizam do divino para justificar seu ódio e preconceito.

Não só do sagrado, como das leis! Um dos comentários foi de um rapaz, que citou o Art. 3º, que dizia, mais ou menos, que “não podem existir espaços exclusivos para transexuais e travestis” e quando um outro homem o interrogou sobre “o que significava”, muito arrogantemente, pediu que ele “interpretasse o texto”, mas o próprio foi incapaz disso – se a mulher trans está usando o banheiro feminino, não se trata de um espaço exclusivo para trans, pois as mulheres cis TAMBÉM estão utilizando o local.

Se você não é transexual, isso significa que você corre menos risco de ser expulso(a) de casa pelos seus pais; que existe uma menor possibilidade de você ser impedido(a) de utilizar o banheiro, pois todos(as) entendem que você é um ser humano e que possui necessidades fisiológicas; que você tem mais oportunidades de trabalho, pois por causa da não-aceitação da sociedade, o que resta para muitos transexuais é o mercado do sexo; que você corre menos risco de sofrer violência na rua ou de ser assassinado, apenas por ser quem é, entre outras coisas, portanto, antes de abrir a boca para falar que “estão querendo aparecer” e que “estão de mimimi”, pense duas vezes. Pense em como seria sua vida se você passasse, pelo menos, por metade das coisas que eles(as) passam TODOS OS DIAS e apenas respeite. Eles(as) não estão empatando sua vida em NADA, mas o seu ódio e intolerância pode barrar e até ACABAR com a vida deles(as).


“Mas Dali, e se uma mulher trans entrar no banheiro e tiverem mulheres ou crianças lá?”

Daí, se a mulher cis se simpatizou com a mulher trans, ela deseja “bom dia, boa tarde ou boa noite” e vive a sua vida feliz. Senão, ela a trata como as outras mulheres cis no recinto: só vê, ignora e vai fazer o que veio fazer ali dentro e vai viver feliz do mesmo jeito. Oxe!

As pessoas frequentemente confundem identidade de gênero com orientação sexual e bom... Existem homens e mulheres trans, que podem ser heterossexuais, homossexuais ou bissexuais e mais outras tantas sexualidades que estão sendo descobertas. A maioria das mulheres trans que conheci são heterossexuais, mas conheci uma que é lésbica e, mesmo assim, qual a diferença? Tantas mulheres cis entram e saem daqueles banheiros e elas são hetero, bi ou lésbicas também e ninguém se importa. Por que tanta preocupação com mulheres trans, que só querem usar o banheiro para fazer o nº 1 ou o 2 e ir embora...?

Muito mais perigosos, são os caras que estão usando o mictório a seu lado, se você for homem, é claro. A população masculina é quem domina as estatísticas de crimes de roubo, violência, estupro e assassinato, sem falar que o nosso país é um dos que mais veem vídeos pornôs com transexuais (sites esses que também têm predominância de acessos masculinos). Hipocrisia que chama, né?


“E o que vou dizer pras crianças?”

Você educa e diz que existem pessoas cis e trans e que tem pessoas que se transformam e outras que se identificam com o sexo que nasceram e pronto. É importante que as crianças saibam disso, pois se tiverem coleguinhas da escola que são trans e sabem disso desde sempre, então, elas saberão como tratá-las bem e com respeito. Simples assim e sem juízo de valor.


“Mas isso é perigoso! E se elas também quiserem ser trans?”

Daí, você tem várias conversas com elas, para saber se ela estão certas disso e cabe a você decidir se você vai fazer parte do problema, traumatizando a criança em sua descoberta, expulsando de casa e expondo ela a todo tipo de violência, sendo TAMBÉM um(a) responsável e coautor nos crimes de transfobia ou se você respira, tenta entender e tenta APOIÁ-LA e PROTEGÊ-LA, para que ela pertença ao pouco número de trans que estão vivos(as) e felizes (apesar de tudo) para contar a história e que passe por todo esse processo de descobertas da forma mais amorosa possível.

E, para finalizar, o papel da imprensa nessa história: acho vergonhoso que um veículo de informação não a trate como ela é - um crime de TRANSFOBIA - e, além disso, não cite o shopping Via Direta, como o palco para este preconceito.

A mídia sempre foi muito manipuladora, mas quando vemos esse tipo de coisa, que é muito semelhante às diferenças das manchetes “traficante é preso”, quando o sujeito é negro e pobre e “jovem filho de empresário”, quando é branco e de classe média/alta, sabemos qual a visão daquele meio de comunicação e, para mim, foi o suficiente para eu deixar de seguir o referido jornal, que também nada fez para impedir os comentários transfóbicos, das pessoas que aplaudiram as atitudes dos seguranças, que só cumpriram ordens da administração do shopping e se mostraram confusos com o assunto.

Enfim... Sonho com o dia em que tudo isso mude e que as pessoas enxerguem o outro da forma como ele(a) é: um outro, que mesmo sendo um ser humano, tal como eu, com as mesmas necessidades básicas de comer, beber, ir ao banheiro, ter direito à saúde, educação, cidadania, etc, é um outro, diferente de mim e está tudo bem.

Não precisamos ser todos iguais, mas precisamos ter os mesmos direitos. É nisso o que eu acredito.


Beijão e até mais.


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