Só, lamente tu

domingo, 12 de novembro de 2023


(Daliana Medeiros Cavalcanti – 13/11/2023)

“Uma mulher solteira incomoda muita gente

Duas mulheres solteiras incomodam, incomodam muito ma-aais...”


É, querides... Nós mulheres não temos um pingo de sossego...

Esses dias, fiquei reparando nos conselhos que algumas pessoas me deram/ainda dão e então, comecei a me questionar: por que o fato de eu estar solteira incomoda tanta gente?

Tradução: "você quer ficar sozinha para sempre? Você não quer ser feliz?"


Claro que namorar é bom e faz falta, mas estou bem e feliz, e não vivo em função disso. O que fico IMPRESSIONADA é que percebo que as pessoas se angustiam mais com a minha vida amorosa do que eu mesma! Eu, hein?

Foi pensando nisso e em outras manas solteiras, que devem ouvir os mesmos “pitacos não solicitados”, que abrangi a pergunta: “por que o fato de uma mulher estar solteira incomoda algumas pessoas?” e então, encontrei algumas respostas na própria história: desde a antiguidade, as mulheres eram preparadas para se casar.

Na Idade Média (estou pegando essa época como exemplo, mas essa “preparação” vem de antes), as mulheres que se casavam e exerciam as funções domésticas eram bem-vistas e as que se recusavam a seguir este padrão eram vistas como “mulheres de vida fácil” e entre esse segundo grupo, estavam as prostitutas e as artistas, que eram igualmente malvistas.


 
Obviamente que a vida de nenhuma dessas mulheres, de ambos os grupos era fácil, mas, como sempre, o sistema patriarcal foi construído para que nos víssemos como inimigas e para impor o padrão “bela, recatada e do lar” como o “caminho correto” para nós.

Naqueles tempos, a mulher era nada mais que uma mera propriedade: quando nascia, pertencia ao pai e ao se casar, tinha que ter a bênção paterna, de um homem escolhido por ELE, para ter um novo “dono”. Logo, a mulher que se divorciava era “mulher de ninguém” e muitas sofreram com esse preconceito social.

Se divorciada, a mulher era mal falada, imagine solteira, negando-se a se casar! Nossa! Era uma afronta à família, que logo, se apressava para “enfiar a menina num convento”, pois assim, ela “seria esposa de Deus”.

E se ela não quisesse isso também...? Bom... No século XIX, encontraram uma solução: a mulher que se negasse a “cumprir com suas obrigações” sofria de uma doença chamada “histeria” e assim, era internada em manicômios e tratada com o uso de consolos.



Sim: os profissionais da saúde mental enfiavam esse brinquedo sexual nelas, porque acreditavam que esse era o tratamento ideal para essa “doença”. Portanto, quando ouço a expressão “isso é falta de rola”, me vêm à mente esse tratamento manicomial que as manas do passado receberam.

Depois dessa rápida “pincelada histórica”, me deparo com o presente e acho inacreditável ver que mesmo estando há séculos de distância, muitos pensamentos se mantiveram e ainda há pessoas que desvalorizam e RIEM de mulheres solteiras (o nome correto é bullying), “sem a proteção de um pau” e essas ideias absurdas são introjetadas em nós já desde a infância, já quando aprendemos que “ser menina é não possuir um falo”.

A partir daí, já se cria uma relação de hierarquia:

quem tem = superior

quem não tem = inferior





Essa teoria foi criada e reforçada por Freud e muitos psicanalistas e aí, com essa hierarquia falocêntrica, estabelecida desde a infância, as pessoas crescem e os “falidos” acham que podem fazer o que quiserem e que os outros seres humanos não devem, nem ao menos, ter direito a uma opinião.

Aliás, demorou muito para conquistarmos direitos como os de estudar, votar, trabalhar, de escolher com quem e SE queremos nos casar, de nos divorciarmos, de não sermos agredidas nem assassinadas por nossos parceiros (ou ex), etc e, obviamente, isso incomodou e ainda vem incomodando muitos homens, que parecem ter muita dificuldade em perceber o óbvio: que assim como eles, somos seres humanos e temos nossas próprias opiniões e escolhas e que “gostar de sexo com mulheres” não é o mesmo que “gostar de mulheres”.

A dificuldade em perceber e aceitar esses simples fatos é TÃO GRANDE que alguns deles tentam evocar esses pensamentos arcaicos de controle e poder sobre o corpo feminino, seja proferindo discursos de ódio em grupos como Incels, Red Pills e MGTOW, seja passando vergonha em aplicativos de relacionamento, colocando exigências como “para ficar comigo, a mulher tem que ser ruiva ou loira, olhos azuis ou verdes, com puro sangue viking, 1,70m, gostar de cozinhar para mim” e por aí vai.

  

No contexto brasileiro, a taxa de crimes como estupro, violência contra a mulher e feminicídio é alta, sem contar com as microviolências, como o manspreading (homens que ficam com as pernas bem abertas no transporte coletivo, interferindo no espaço em que a mulher ao lado está sentada), manterrupting (homens que interrompem a mulher, por não considerarem importante o que elas têm a dizer), mansplaining (conhecido como “macho palestrinha”, em português, que é quando o home presume que a mulher não sabe nada e tenta ensinar tudo a ela), gaslighting (quando um homem faz um jogo de manipulação, fazendo a mulher se questionar das suas capacidades ou sanidade), aquela “linda” situação em que o homem passa uma cantada em uma mulher na rua, mas quando percebe que ela está acompanhada, ele se desculpa... COM O COMPANHEIRO DELA, etc.

Alguns homens, quando leem essas críticas, se colocam logo em posição defensiva e falam “já vi que não gosta de homem. Fique com uma mulher logo!” e olha... Se sexualidade fosse questão de escolha, muitas mulheres “virariam lésbicas”, por viverem tantas experiências ruins e até traumáticas de relacionamentos com o sexo oposto. E com gays, não é muito diferente! Conheço amigos gays, que também viveram muitas relações frustrantes e que já disseram que “se pudessem mudar e gostar de mulheres, mudavam”. Se isso não os assusta, meninos, nem causa o mínimo de autorreflexão em vocês, deveria.



“Nem todo homem é assim” e a gente sabe, mas é sempre um homem e, neste sentido, ainda falando daqui do Brasil, os homens reconhecem que o machismo existe, mas não se reconhecem machistas: é uma conta que nunca fecha porque não há autocrítica, e porque enquanto o patriarcado nos ensina a competir, ele os ensina a se unirem e se apoiarem.

Não acredito na existência de pessoas 100% desconstruídas, mas a esperança que resta para nós mulheres é encontrar um homem que, pelo menos, nos escute, tente compreender quando falamos sobre situações que não foram legais, por estarem imbuídas de machismo, que esse diálogo cause uma mudança em si mesmos e que eles conversem sobre isso com amigos, para incentivá-los a escutarem às mulheres e reduzirem esses comportamentos e atitudes machistas.

Diante de toooodo este cenário, vocês querem mesmo incentivar essa carência e dependência ancestral nas mulheres solteiras? Querem que elas, por causa desse desespero que colocam em suas cabeças, corram o risco de se manterem em relacionamentos tóxicos e abusivos, somente para “agradar e ter algum valor pra vocês”? Por que uma mulher tem que ser “de alguém” e não dela mesma?



Como se não bastasse tudo isso, ainda somos muito julgadas, seja por estarmos nos divertindo em relacionamentos sem compromissos (rótulo social: puta) ou por estarmos sozinhas (rótulo social: mosca-morta) e por “sermos de ninguém”, nos julgam como “pessoas com muito tempo livre”, por isso, quando precisam deixar crianças ou idosos sob os cuidados de alguém, sempre sobra para a gente. Daí, não conseguimos nem “ser de nós mesmas”...

Ai, gente... É difícil ser mulher: basta existirmos (ou termos existido) para o povo achar algum motivo para falar mal da gente, seja pelo corpo, condição financeira, estado civil, o modo como nos vestimos (usado como “motivo causador de assédio” ou “estupro”), etc, e espero estar viva para enxergar mudanças na mentalidade e no comportamento social conosco.

Enquanto isso não acontece, ao invés de falar besteira e sugerir que a mulher solteira “arrange alguém”, por presumir que ela é infeliz ao estar só – que é um preconceito TREMENDO, pois a mulher casada também não está com a felicidade garantida. Conheço mulheres casadas super-descontentes em seus casamentos, mas se mantêm por questão de necessidade –, converse, escute a história dela (você pode se surpreender) e se quiser REALMENTE ajudar, ajude-a a se sentir empoderada, a se amar do jeito que é e a não delegar a responsabilidade da sua felicidade a terceiros, afinal de contas, convivemos e conviveremos em nossa própria companhia até o fim de nossas vidas, então, por que não transformar essa autocompanhia em algo agradável?

Tradução: "ser/estar solteiro(a) não significa que você não sabe nada sobre o amor. Às vezes, estar sozinho(a) é mais sábio do que estar num relacionamento falso."


Se escolher estar com alguém, ela só conseguirá uma relação saudável quando aprender, primeiro, a estar feliz consigo mesma (solitude que chama), caso contrário, estará fadada a se envolver com outros homens tóxicos. Entretanto, se a decisão é continuar solteira, ótimo também.

O importante é ser feliz em unidade e permitir apenas pessoas aditivas, evitando as subtrativas.

Beijão, galera!


PS.1: falei majoritariamente das relações heterossexuais, mas se se aplicarem a outros tipos de relacionamento, adequem à situação de vocês ou à de alguém que conheçam.

PS.2: quando falei sobre o falocentrismo, quis falar sobre como a sociedade ainda pensa, mas tenho ciência de que esses valores, tão centrados nas genitálias, deveriam estar ultrapassados, pois, atualmente, a autodefinição de homem, mulher ou não-binárie; cis ou trans, não depende mais disso.


PS.3: geeeeente! Como as pessoas presumem coisas da gente! Já encontrei mais assunto para falar: pensam que a gente se arruma e tira foto com o único intuito de atrair os homens (como se não pudéssemos nos arrumar por nós mesmas) e se você colocar "solteira" no status de qualquer rede social, tem cara que interpreta isso como "ela tá disponível e doida atrás de alguém. Vai me querer com certeza" e se negarmos, se preparem pro "piti"!

PS.4: nossa! Tomei conhecimento de um novo termo - singlismo, que é o incômodo que as pessoas sentem ao verem pessoas solteiras. Quando escrevi esse texto, não conhecia.


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