A cultura da "esperteza"

sábado, 3 de fevereiro de 2024


(Daliana Medeiros Cavalcanti – 03 de fevereiro de 2024)

Desde pequena, me ensinam que “tenho que ser mais esperta” e sempre achei isso estranho, afinal de contas, era uma criança e tirava boas notas na escola. Não entendia o que queriam dizer com isso.

Hoje, olhando o dicionário, vejo alguns significados de “esperto” e encontro:

es·per·to

adj

1 Que está acordado; desperto.

2 FIG Que não se deixa enganar facilmente; arguto, perspicaz, sagaz, solerte.

3 Que é cheio de astúcia; ardiloso, ladino, manhoso, solerte.

4 Que está quase quente; morno: Água esperta.

sm

Indivíduo ardiloso; espertalhão.

Eu era criança e não entendia isso: confundia “esperteza” com “inteligência”, mas são duas coisas distintas e foi somente na adolescência que, certa vez, um professor do ensino fundamental falou da diferença entre ambos ao ministrar sua aula.

Então, eu compreendi que ao dizerem isso pra mim, estavam falando dos significados 1 e 2 do dicionário: pediam para eu “estar mais ligada” e para não me deixar enganar pelas pessoas, mas gente... Eu era uma criança e felizmente (e infelizmente), eu não tinha malícia e era muuuuito ingênua. Eu REALMENTE não percebia as segundas intenções das pessoas e só pensava em brincar, fazer amigos e aprender sobre a vida e o mundo a minha volta.



Algumas vezes, me ensinaram a ser como o significado número 3... E eu nunca consegui ser assim porque sinto um verdadeiro NOJO e ASCO de pessoas com esse tipo de comportamento, e o mais inacreditável é que tem gente que considera essa “esperteza” como um aspecto positivo.

Em minha juventude e vida adulta, eu tive várias experiências negativas, em que fiquei horrorizada com essa “esperteza” das pessoas... Pessoas que jurava que eram amigas... Amantes... E, na verdade, só queriam se beneficiar com algo...



Durante anos, me perguntei, meio em tom de brincadeira “mas eu não sou rica, gente. O que é que esse povo quer? Tenho dinheiro não”, e em tom reflexivo e um pouco auto-depreciativo, questionei “se não é dinheiro, o que diabos eu tenho e/ou posso oferecer que pode causar interesse em alguém, a ponto da pessoa vir até mim e fingir que me ama?” e hoje, vejo que o que querem pode variar.

Pode ser alguma informação ou contato que eu tenha... E nesse aspecto, me pergunto “e por que esse povo não arregaça as mangas e corre atrás?” NADA que eu consegui caiu do céu. Tudo veio com muito suor e esforço, mas aí... “Para que ralar se posso ser esperto e colher facinho numa fonte disponível?”

Pode ser que queiram meu empenho em conquistar as coisas. Quando eu sou tomada pela paixão de criar e concretizar, eu corro atrás. Dou meu sangue! Muita gente se aproveita disso pra querer parceria e ao invés de perguntar “Dali, você quer ajuda? Tá cansada? Somos uma equipe. Vamos dividir as tarefas e responsabilidades”, não. Sequer passa pela cabeça dessas pessoas que SIM, preciso de ajuda, que SIM, estou cansada e que o espírito do trabalho em equipe deveria sempre estar presente, para o bem-estar de todos(as). Vale lembrar, aqui, que eu ainda não me curei 100% do quadro duplo de depressão e ansiedade que tenho! Me sinto melhor, mas em virtude desse agravante e de todas as atividades laborais que estou envolvida, tudo que faço exige um esforço do caramba! Então, é fácil “dar uma de esperto” e ficar “na sombra e água fresca” enquanto estou lá, AGINDO e tentando fazer a coisa funcionar, apesar das pedras em minhas costas.




Às vezes, o que querem é meu acolhimento, escuta e meu tempo de vida... E esses recursos são preciosos e, infelizmente, muitas dessas pessoas não são pessoas que necessitam desse abraço na alma: são pessoas tóxicas, manipuladoras e narcisistas, que só querem roubar o melhor de você – sua alegria, vitalidade e amor...

O mais triste de tudo isso é que eu amava essas pessoas e realmente acreditei que elas eram amigas ou “os amores da minha vida”... São cicatrizes que permanecem e que me deixaram “mais esperta”, no significado 1 e 2 do dicionário, ou mais arredia, se preferirem, sem permitir que toda e qualquer pessoa se aproxime de mim, por saber que muitas preferem “ser espertas” (3) a viver de verdade.

A “esperteza” é muito valorizada pela nossa sociedade pós-moderna e alguns filmes biográficos mostram personalidades assim, como o filme sobre o Mark Zuckemberg, criador do Facebook, por exemplo, que ficou milionário, “passando a perna” em muita gente.

 

Quer dizer que “vale tudo” para se dar bem? Vale tudo, contanto que você se beneficie, mesmo que isso signifique mentir, roubar, fingir um amor ou carinho que você não sente pela pessoa...? Vale tudo MESMO? Poxa! Então, Maquiavel, de seu túmulo, “deixa seu like” nessa forma de agir, que só corrobora com sua frase de “os fins justificam os meios”! Aliás, a essas pessoas “espertas”, especialmente nesse sentido onde o escrúpulo é muito baixo, se dá o nome de “maquiavélicas”.



E não adianta ir pro culto orar, quando seu comportamento com o próximo é podre. É até chocante ver que algumas pessoas religiosas, saem por aí, “arrotando santidade”, agem de forma completamente reprovável à dignidade humana e à própria religião que seguem, mas são tão cheias de si que acham que conseguem ser “espertas” com o próprio Deus pra quem rezam que, segundo a crença, “é onisciente”!

Será que esses espertalhões lembram desse trecho bíblico?
“Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos. (Provérbios 6:16-19 NVI”)

Não sei... Sei que nesse sentido da esperteza, prefiro a minha tola ingenuidade mesmo. Dá trabalho conquistar as coisas sendo ética, mas dá muito mais trabalho mentir e continuar insistindo na mentira, na esperança temporária de que “nunca vão descobrir”, pois sempre descobrem, mesmo que dure anos.


 
Mal sabem essas pessoas que ao se dar ao trabalho de se aproximar de alguém, para conseguir algo (que nem sempre é dinheiro, como falei acima), elas estão, inconscientemente, atestando a própria incompetência - é como se elas dissessem "eu não tenho qualidades, não sei e nem tenho capacidade para correr atrás e conseguir algo que Fulano(a) conseguiu/tem e, por isso, eu vou ficar bem amigo(a) dele(a) para colher os louros de algo que, na verdade, não é, não foi e nunca será mérito meu e sim, dele(a)".

Aliás, será que passa pela cabeça dessas pessoas de que “viver de mentiras” não é algo muito esperto? Pode ser confortável por um tempo, mas dependendo da ilusão, o(a) próprio(a) “falseane” sofre, por estar preso a algo que não existe e vai sofrer ainda mais quando for descoberto(a).

Sei que eu prefiro sofrer escalando montanhas, pois é impossível passar pela vida sem sofrer. Pode não ser muito esperto, mas quando as coisas dão certo, a sensação gostosa de conseguir algo é um deleite que nos lembra que “o crime não compensa”, apesar de tanta coisa na mídia nos mostrar o contrário.



Sei, também, que prefiro ser/ficar esperta para reconhecer essas pessoas e não querer que elas façam mais parte da minha vida e da minha escalada.


0 comentários:

Postar um comentário