Sementes da misoginia - impressões sobre o Amor durante a Grécia Antiga

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017


Após tanto tempo, finalmente, estou escrevendo sobre o segundo capítulo desse livro interessantíssimo: "Livro do Amor" da Regina Navarro Lins, que vem falando sobre como eram as formas de amor desde a Pré-História até os dias de hoje.

Esse livro é de 2012 e é dividido em dois volumes: o primeiro, que é o que estou lendo no momento, retrata o amor desde a Pré-História até a época do Renascimento e o segundo vai do Iluminismo até a atualidade.

Esta minha pesquisa que antes, era mais voltada para a área acadêmica, está se tornando cada vez mais pessoal. É de minha própria vontade e interesse saber mais sobre como eram as relações humanas desde a antiguidade e saber como elas se transformaram nas relações que vemos hoje e confesso estar muito impressionada com o quanto a sociedade grega nos marcou profundamente.

Quisera eu que essa constatação fosse de felizes coincidências, mas não é. Muitas coisas do pensamento machista que ainda perdura hoje, foram criadas nessa época (lembrando que o machismo não surgiu aí e sim, na Pré-História, como falo nesta postagem aqui, que foi o comentário primeiro capítulo do livro).

Confesso que esse capítulo foi muito difícil de fichar e tirar poucos trechos como referências, pois boa parte do que ele fala é interessante e mostra o quanto ainda carregamos muitos dos ideais gregos nos dias de hoje.


Panorama

Como o livro trata apenas a sociedade ocidental, podemos observar, de um capítulo para o outro, o enorme avanço da civilização, com criação de leis... Classes... Toda uma estrutura social que foi organizada a partir desta época e, com isso, vêm algumas diferenças nos relacionamentos.


É quase impossível falar de relacionamentos sem mencionar os papeis de homens e mulheres dentro desta sociedade.

Durante o período Homérico, a rigidez moral não era tão grande quanto foi no período Clássico, especialmente, em Atenas. No casamento, as mulheres do período homérico ainda gozavam de relativa igualdade de direitos e exerciam influência nos homens. Além disso, as mulheres tinham mais funções e participações ativas na casa, cuidando dos doentes, fornecendo roupas para seus maridos, preparavam os alimentos, cuidavam dos filhos e das terras na ausência dos guerreiros...

A união de Ulisses e Penélope eram um exemplo de casal harmonioso, o que era bem raro na literatura da época.


É muito interessante verificar que a questão da "mulher ideal" e da "mulher maldita" existir desde esse período.
“No mundo greco-romano, Penélope e Helena representaram os exemplos de esposa boa e má, respectivamente, uma oposição que os cristãos atribuiriam mais tarde a Eva e à Virgem Maria.”

É interessante perceber, ainda, que essa distinção entre as mulheres esteja ainda tão ressaltada, principalmente nos comentários machistas, quando ouvimos que "uma mulher é para casar e outra é para pegar". 



Durante a Grécia Clássica, conforme o enriquecimento dos gregos, foram necessitando menos das mulheres como esposas, pois tinham escravos para prover as roupas e cuidar das terras, deixando as esposas com uma função quase inútil e com isso, os homens passaram a desvalorizar suas mulheres e tinham pouco contato com elas.

Os homens possuíam uma enorme liberdade sexual, tanto que consideravam o casamento como algo dispendioso e uma barreira à sua liberdade. Dentre suas possibilidades de prazer, haviam as concubinas, as hetaíras, as prostitutas e os efebos.

Fiquei, particularmente intrigada com as hetaíras e os efebos, que eram os objetos de afeição maiores entre os homens da época.

Às esposas, eram negado tudo! Educação, filosofia, combate, política... Portanto, os homens consideravam as mulheres como burras. Como a elas não era permitida a liberdade sexual que eles tinham, muitas se queixavam de que eles não lhes davam prazer e por isso, eles achavam que as mulheres eram muito maliciosas. É curioso e chocante ler que existia uma lei e que essa era uma das poucas que davam algum direito às mulheres, que o homem poderia fazer sexo com sua esposa 3 vezes durante o mês.

As hetaíras, mesmo sendo cortesãs de classe, já possuíam instrução para falar de todos os assuntos que seriam negados às esposas e era por causa do conhecimento, liberdade e beleza delas que os homens ficavam fascinados. Seria cômico se não fosse trágico.

Pintura, em vaso, de uma hetaíra 


Por falar em "cômico e trágico", as esposas tinham o direito de ir ao teatro, mas elas só poderiam assistir tragédia. Espetáculos cômicos não eram "dignos" para elas.

Já os efebos eram adolescentes que eram aceitos como aprendizes, mas por quem os homens desenvolviam um relacionamento homossexual, que era super-comum na época. Eles eram tutores desses rapazes e os treinavam na arte da guerra, oratória, filosofia, etc desde os 12 anos até os 18. Aos 19 anos, o rapaz já era considerado um homem "dono de si" e podia, ele mesmo, adquirir seus efebos.

Um homem e seu amado efebo retratados neste vaso


É interessante que essa é uma característica que não se perpetuou no mundo hoje. A homossexualidade começou a ser perseguida nos séculos XII e XIII e foi vista doença no século XIV. Após a criação dos anti-concepcionais, nos anos 60, é que os homossexuais começaram a ser mais respeitados e a conviver com os heterossexuais com relativa paz, entretanto, ainda hoje, os homossexuais são as minorias que mais sofrem com o ódio e agressão verbal, psicológica e física hoje.

Como as mulheres viam seus maridos e tinham prazer com eles poucas vezes, era muito comum que elas recorressem ao uso de consolos, que tivessem serviços de alcoviteiras e/ou tivessem relações com outras mulheres, entretanto, o relacionamento entre mulheres era ridicularizado, afinal, eles nem sequem consideravam as mulheres como pessoas.

Um dos casos mais famosos de romance entre mulheres foi na Ilha de Lesbos, quando a poetisa Safo se apaixonada por suas alunas e escrevia muitas poesias, declarando seu sentimento por elas. Certa vez, uma de suas alunas ia se casar com um homem e apaixonada e enciumada, Safo escreve:
"Semelhante aos deuses me parece esse homem
Feliz que se senta e te fita, estando tu diante dele
Bem de perto, no silêncio, ouve
tua voz tão doce.
Rindo o riso suave do amor. Oh! Isto, somente isto
Sacode o perturbado coração que há no meu peito, fazendo-o tremer!
Desde que eu possa ver-te por apenas um pequeno momento
Minha voz é imediatamente silenciada
Sim, minha língua está partida; por todo o meu ser,
Sob minha pele de repente desliza um fogo sutil;
Nada meus olhos veem, e uma voz, de ondas claríssimas
Em meus ouvidos ressoa
O suor escorre por meu corpo, um tremor se apodera
De todos os meus membros, e, mais pálida do que a grama de outono
Tomada pela angústia da morte que ameaça, eu desmaio
Perdida no transe do amor."

Safo tinha certo prestígio entre os gregos e, portanto, seu poema é referência, na Medicina, para diagnosticar os sintomas da paixão.

Afresco de Safo encontrado em Pompéia


Outra prática que hoje, não é bem vista e hoje, deve ser combadita é a da pedofilia. Era perfeitamente normal, na época, um homem adulto possuir efebos dos 12 anos de idade e eles não só tinham essa relação de ensino-aprendizagem, como desenvolviam um relacionamento amoroso um pelo outro, com relações sexuais, obviamente. Existem textos e poesias com verdadeiras declarações de amor dos homens a seus efebos, exaltando sua beleza e masculinidade.

Haviam casos, entretanto, em que os próprios maridos ofereciam suas esposas aos convidados da casa ou se outros homens pedissem permissão, caso se interessasse em suas esposas. Eles a tratavam como um objeto de suas possem e poderiam oferecê-las a quem quisessem.

Na Grécia Clássica, estar com hetaíras, concubinas, prostitutas e efebos não era visto como traição. A única coisa que não era permitida era estar com uma mulher casada, entretanto, existem casos registrados de homens que se relacionavam, em segredo, com mulheres casadas.

Nesses casos secretos, se o homem descobrisse, ele teria o direito de matar o homem que se relaciona com sua esposa para lavar sua honra. Honra era algo extremamente importante para o homem grego e traição era uma desonra grave.

Muitas vezes, os homens resolviam "perdoar" as traições para não ter que devolver o dote às famílias das mulheres, principalmente se ele significasse uma enorme perda de dinheiro. Ele aceitava o arrependimento da esposa, mas caso não fosse o suficiente, ele teria que separar-se dela e devolvê-la para lavar sua honra.

As mulheres adúlteras eram muito mal-vistas. Se elas saíssem para assistir algum sacrifício público e outras pessoas a vissem, o primeiro homem que a visse poderiam arrancar-lhes as roupas e enfeites e açoitá-la, mas não podia mutilá-la ou matá-la.



Veja o que diz esse trecho quanto ao direito das mulheres de alegarem que os maridos eram adúlteros e pedidos de divórcio:
"A mulher não podia alegar adultério, mesmo explícito, como motivo para o divórcio. Se ela provasse ter sido vítima de abuso ou de violência física por parte do marido, o divórcio poderia ser concedido. Como resultado do processo de divórcio, todavia, o nome da mulher seria publicamente divulgado e isso era extremamente indesejável, pois as mulheres divorciadas, embora não fossem impedidas de se casar novamente, eram tratadas com desconfiança."

Os casamentos eram arranjados por homens, negociando terras e a mulher não tinha participação nenhuma. Eles desconheciam totalmente a relação entre casamento e amor, estando esse sentimento, da forma como conhecemos hoje, reservado apenas às hetaíras e efebos.

Pouco se sabe sobre os sentimentos das mulheres, pois os textos literários eram escritos por homens e para homens, logo, eles que descreviam como eles achavam que elas sentiam, mas acredita-se que havia uma mistura de amor e ódio por seus senhores, afinal de contas, elas só lhes davam os filhos que eles queriam e cuidavam da casa. É interessante ler que alguns poucos homens escreviam contos sobre esposas que se revoltavam com a forma como eram tratadas e assassinavam e se vingavam de seus maridos e seus parceiros sexuais, Os homens passaram a temer suas esposas, mas isso não parece ter feito com que eles as respeitassem mais ou mudassem seus comportamentos com elas.

Pintura de Medéia, personagem de uma tragédia que leva seu nome, escrita pelo poeta Eurípedes, onde a esposa, furiosa por ter sido abandonada por seu marido, que se interessara em outra mulher, a presenteia com um vestido que a queima até a morte e mata os próprios filhos que tivera com o ex-marido.


Os homens gregos não viam o amor como "meta de vida" e sim, como um prazer... Uma diversão e amar alguém era um dilema para ele, especialmente, uma mulher, pois ou o amor era visto como um exercício prazeiroso para o corpo ou como um tormento causado pelos deuses para vê-lo sofrer até levá-lo à ruína.


Considerações

Nossa! Foi tanta informação apenas nesse capítulo que também está difícil tecer poucas considerações. Hehehe!

Muito bom conhecer a origem de várias palavras e expressões e se dar conta do quanto essa cultura influenciou de fato.

O termo "erótico" vem do deus "Eros", mais tarde, sendo conhecido como o "cupido"... "Afrodisíaco" seria uma referência à deusa "Afrodite"... A palavra "lésbica" tem origem nos romances entre mulheres que aconteciam na Ilha de Lesbos... "Andrógino" tmb tem uma história muito interessante por trás, contada por Platão...

O nascimento da deusa Afrodite, sendo representado neste vaso


O Deus Eros, antes dele ter se transformado no travesso cupido

"No início cada ser humano tinha forma redonda, uma esfera fechada sobre si, quatro mãos, quatro pernas, duas cabeças, dois órgãos sexuais e todo o resto harmonioso. Havia três espécies de seres: Andros, Gynos e Androgynos, sendo Andros uma entidade masculina composta de oito membros e duas cabeças, ambas masculinas, Gynos idem, porém femininas, e Androgynos composto por metade masculina, metade feminina. 
Dotados de coragem extraordinária, eles atacaram os deuses, que, para puni-los e fazer com que se tornassem menos poderosos, os dividiram em dois. Seccionado, de Andros surgiram dois homens; apesar de seus corpos estarem agora separados, suas almas estavam ligadas, por isso cada um procurava a sua metade. 
Andros deu origem aos homens homossexuais. O mesmo ocorre com os outros dois seres. Gynos originou as lésbicas, e Androgynos, os heterossexuais. Quando se encontravam eram tomados por ternura, confiança, amor e o desejo de se fundirem ao objeto amado e constituírem um só em vez de dois. Desde então, as metades separadas andam em busca de sua metade complementar."

Também confesso ter ficado surpresa ao ler que os brinquedos sexuais, tais como os conhecidos vibradores, tiveram origem, também, na Grécia Antiga. Não se lê isso nos livros de História. Hehe!

Uma ateniense com algumas opções de consolo


E é chocante o quanto vemos pensamentos machistas e misóginos se repetindo através do tempo... Até hoje, vemos homens que consideram que as mulheres são inferiores... Que são burras... Mulheres que aprendem, desde cedo, que a "missão dela" é cuidar da casa, procurar um marido, casar e ter filhos e muitas não buscam o conhecimento ou têm acesso a ele por aceitarem sua condição ou por ignorância mesmo... Chocante ver que ainda existem homens que mesmo com a sociedade tendo mudado bastante e estando com leis mais desenvolvidas, comportam-se como os homens gregos, se casando, mas tendo várias experiências sexuais fora do casamento (só que agora, é considerado traição sim e as mulheres têm direito à pensão alimentícia para os filhos, por exemplo)... Chocante ver como a misoginia se perpetua e como tem homens que ainda sentem essa necessidade de lavar sua honra com sangue se as mulheres se separam deles ou se são traídos...

Dói ver o quanto aquelas mulheres não tinham direito à quase nada e o quanto a vida delas era terrível. Inclusive, o infanticídio era muito comum. Os casais tinham preferência por terem filhos homens, pois se tivessem filhas, quando crescessem, teriam que se casar e isso constitui em repasse de dote ao marido. Em outras palavras, uma filha significava prejuízo aos pais gregos. Ou eles as matavam ou as abandonavam. Também era comum haver infanticídio quanto haviam muitas baixam na guerra. Eles matavam as meninas para equilibrar o número de meninas e meninos.




É curioso ver, também, as diferenças. Na Grécia antiga, se relacionar com pessoas de ambos os sexos era algo perfeitamente normal para homens e mulheres. Muitos homens casados se divertiam com as hetaíras... Com os efebos... E três vezes por semana, tinha que garantir o prazer, que era direito da esposa.

A mulher, por sua vez, como não tinha a companhia do marido constantemente e não podia sair sem ele, tinha que se contentar com os brinquedos eróticos, com as alcoviteiras e outras mulheres. A própria Safo, mesmo com sua preferência por mulheres, amou também um homem e se casou com ele.

As atenienses desse período Clássico nem sequer tinham autonomia. Só possuíam o direito de herança e de gerar cidadãos legítimos e mesmo a herança que recebiam, era administrada sob tutela/autorização ou do pai, caso fosse solteira, ou do marido, se fosse casada. Era uma mercadoria que apenas mudava de dono: do pai ao marido.




É, amig@s... Essa é a triste história da mulher e do quanto ela foi destituída de tantos direitos, sempre concedidos aos homens. Não estamos falando de séculos atuais e sim, de tempos ainda antes de Cristo! A Grécia Clássica está compreendida entre os séculos IV e V a.C. e ainda hoje, existem pessoas que consideram a luta por direitos da mulher uma "choradeira" ou "mimimi", como chamam hoje em dia...




Depois de tudo o que li sobre a Grécia Antiga neste capítulo e compreendo um pouco mais a sociedade em que vivemos e de onde surgiu todo esse discurso de ódio que vemos nas redes sociais contra o feminismo, posso dizer que a música do Chico Buarque "Mulheres de Atenas" ganhou uma densidade muito maior em meu coração (e, para quem não entendeu, o Chico não está elogiando o modo de vida delas. Ele está se utilizando de ironia).


Boa noite a tod@s!

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